O Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estão se reunindo para elaborar ações conjuntas que tentem diminuir decisões judiciais favoráveis a pacientes para a obtenção de medicamentos ou tratamentos negados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou convênios médicos. O CNJ é uma instituição de apoio ao sistema Judiciário, que tem como missão trabalhar pela transparência e eficiência do sistema jurídico “em benefício da sociedade”. Dentre as propostas que estão sendo estudadas está a ampliação de núcleos técnicos, com a participação de especialistas do hospital Sírio Libanês, nome referência no país e na América Latina. A ideia é oferecer pareceres para ajudar os juízes a tomarem decisões. Para especialistas, entretanto, há uma tentativa de criminalizar a prática de pacientes cobrarem seus direitos de acesso à saúde na Justiça, quando o problema, de fato, está no próprio sistema, que falha em oferecer o que a lei determina.
O combate a essa chamada judicialização na saúde tornou-se uma das principais bandeiras do novo ministro da Saúde, Ricardo Barros. O Governo federal prevê que, até o final deste ano, gastará 1,6 bilhão de reais com a compra de medicamentos, equipamentos, cirurgias e internações feitos por demanda judicial, o que representa pouco mais de 1% do Orçamento da pasta. Segundo o ministro, as medidas da Justiça desorganizam a previsão orçamentária dos governos e podem prejudicar outros pacientes, já que a verba precisa ser remanejada. “Faz-se uma política de saúde, se constrói todo um planejamento e as decisões judiciais mudam isso”, afirma ele. “É uma decisão que tira de alguns para dar para outro.”
O assunto é polêmico num país onde recorrer à Justiça muitas vezes é o único caminho para ter direitos básicos assegurados. Para especialistas, a via judicial é a única forma de muitos pacientes obterem aquilo que o SUS e os planos de saúde deveriam oferecer por lei, mas acabam por negar. “Atualmente, vemos muitas pessoas colocando uma carga negativa na judicialização, como se ela fosse culpada pela má- situação da saúde do país. Mas ela é uma consequência de um sistema que é mal gerido pelo Governo e de um serviço que é mal prestado pelas operadoras de saúde”, afirma Marcos Patullo, especialista em direito à saúde do escritório Vilhena Silva. “Existem fraudes, claro, mas a grande maioria das pessoas entra na Justiça por não ter outra alternativa.”
É o caso do aposentado do Rio de Janeiro Arnaldo Mourthe, de 79 anos, que sofreu um infarto. Durante o período que ficou internado no hospital, ele contraiu uma série de infecções que prejudicaram ainda mais sua saúde. O médico determinou, então, que o melhor seria que ele voltasse para casa, mas que precisaria de um Home Care (assistência médica domiciliar), que o plano de saúde é obrigado a oferecer. O convênio, entretanto, ignorou o pedido por um mês. “Entramos na Justiça e em uma semana se resolveu”, conta a mulher dele, Marília, 76 anos. Em casa, Arnaldo se recupera bem.
O Governo, por outro lado, alega que há casos na Justiça que levam a gastos desnecessários. Um dos argumentos é que o desconhecimento dos juízes em relação a procedimentos médicos abriria espaço para exageros em favor do paciente que pesam no orçamento da pasta. Um medicamento mais caro, por exemplo, é pedido pelo juiz quando há outro similar, mais barato, oferecido pelo SUS ou que consta no rol de procedimentos obrigatórios da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula os planos de saúde. Os casos de fraudes, como o revelado nesta semana no Hospital das Clínicas de São Paulo – em que, segundo as suspeitas, médicos incentivavam pacientes a entrarem na Justiça para obter uma liminar para a implementação de um marca-passo cerebral – seriam outra fonte de preocupação. Como era obtido por via judicial, o marca-passo não passava por licitação e era comprado acima do preço de mercado, o que beneficiava a fabricante, que pagava propina aos médicos.
As reclamações também partem das operadoras de planos de saúde, que têm tido, a cada ano, um acréscimo nas demandas judiciais, de acordo com o pesquisador e professor do departamento de Medicina Preventiva da USP, Mario Scheffer. “A judicialização é uma desconsideração com políticas públicas vigentes. É a via judicial desmoralizando as políticas públicas. É uma anarquia”, afirma Solange Beatriz Mendes, presidenta da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), que representa as principais operadoras do país. A instituição, assim como outros empresários do setor, se reuniram recentemente com o ministro da Saúde para tratar da questão.
No mês passado, Barros também esteve reunido com membros do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde do CNJ para discutir uma parceria com a entidade, um órgão gestor que realiza ações na área da saúde na Justiça. O fórum criou em fevereiro deste ano um comitê, a pedido do ministro do Supremo, Ricardo Lewandowski, para fazer um diagnóstico sobre a judicialização na saúde. “Verificamos que falta ao juiz um corpo técnico que dê a ele informações em tempo rápido para as decisões”, explica o conselheiro Arnaldo Hossepian, supervisor do fórum.
Na reunião com o ministro, ele propôs ao ministério uma parceria para ampliar os Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NATs), que deem suporte aos juízes na tomada de decisões. A ideia é que eles existam em todos os tribunais estaduais e regionais e que contem com profissionais de saúde, professores de universidades públicas e instituições como hospitais privados. Eles elaborariam pareceres sobre os pedidos judiciais e fariam recomendações aos juízes. O ministério ajudaria a pagar o trabalho envolvido na produção dos pareceres. Uma reunião entra o CNJ e integrantes da pasta está marcada para esta semana para acertar detalhes.
Hossepian destaca que esses documentos ficariam disponíveis para os juízes, que optariam ou não por utilizá-los, já que as decisões dos magistrados são autônomas. Segundo ele, também há uma proposta de se criar áreas destinadas à saúde nos tribunais. As questões relacionadas ao SUS são resolvidas na Vara da Fazenda Pública e, nas comarcas onde há mais de uma Vara do tipo, uma delas seria destinada para as demandas médicas.
Scheffer, no entanto, lembra que quando os pacientes recorrem à Justiça também ajudam a acelerar a inclusão de procedimentos mais modernos nos protocolos do SUS e da ANS. Quando várias ações por um mesmo medicamento, por exemplo, começam a aparecer nos tribunais e o Governo é obrigado a comprar o remédio individualmente, para cada paciente que obtém o direito na Justiça, ele sai mais caro. Por isso, se apressa em colocar no rol obrigatório, para que o remédio possa ser comprado em larga escala pelo Governo para ficar mais barato. “Elas ajudam a apressar ações que depois vão beneficiar todo mundo. Isso aconteceu muito com medicamentos para a Aids e a hepatite”, exemplifica. “A tentativa de criminalizar a judicialização não é o caminho.”