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Entrevista

Se o PT minguar, desigualdade pode sair da agenda política, diz pesquisadora

O partido ajudou a politizar a questão da desigualdade, e sua crise pode afetar o debate, afirma organizadora do livro 'Trajetórias da Desigualdade: Quanto o Brasil Mudou nos Últimos 50 Anos'

Carta Capital/Marcelo Pellegrini
Divulgação

Marta Arretche é cientista política especializada em políticas governamentais pela USP

O Brasil foi bem sucedido em reduzir suas desigualdades nos últimos anos, mas há um risco de retrocesso diante da crise engolfando o PT. A avaliação é de Marta Arretche, diretora do Centro de Estudos das Metrópoles (CEM) da Universidade de São Paulo e organizadora do livro recém-lançado Trajetórias da Desigualdade: Quanto o Brasil Mudou nos Últimos 50 Anos (Editora Unesp).

Segundo Arretche, as desigualdades no Brasil foram reduzidas por um “conjunto de políticas e foças de mercado” nem sempre relacionadas com decisões políticas. A transformação do PT em um partido competitivo, a partir de 1989, no entanto, alçaram a desigualdade a uma questão política na medida em que o Partido dos Trabalhadores conseguiu politizar a desigualdade. “Se a ameaça eleitoral de o PT desaparecer no futuro, sem que outro partido com viabilidade eleitoral mobilize essa questão, não há garantia que a questão social continue a ter importância na competição política”, diz.

Em entrevista a CartaCapital, Marta Arretche fala também sobre os fatores que levaram o Brasil a reduzir suas desigualdades, o avanço de uma agenda conservadora e a escolha entre o ajuste fiscal e os programas sociais.

CartaCapital: No período da redemocratização existia uma expectativa de que o fim da ditadura reduziria a desigualdade. Isso está acontecendo no Brasil?

Marta Arretche: Na verdade, os indicadores sociais no Brasil eram muitos ruins no final do regime militar. Mesmo quando comparados com países com PIB per capita inferior ao brasileiro, a pobreza e a desigualdade no Brasil eram muito elevados no final da década de 80. Isto quer dizer que a herança do regime militar para as gerações que governaram o Brasil sob a democracia era de demandas muito grandes. De lá para cá, as condições de vida melhoraram muito para os 90% menos ricos da população brasileira. Entretanto, é um equívoco afirmar que a democracia é causa suficiente para a queda da desigualdade. No Brasil, esta é explicada por conjunto de políticas governamentais e de forças de mercado que se combinaram no tempo.

CC: Quais?

MA: Há fatores alheios à política, como a trajetória demográfica de queda nas taxas de nascimentos. Isso teve impacto na queda da produção de mão de obra barata e abundante no Brasil, que historicamente foi um fator muito importante para a produção de desigualdades no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, houve um aumento importante nos níveis de escolaridade em todas as camadas da sociedade brasileira. O número de jovens que chegou à universidade ou ao ensino médio multiplicou por 6 de 1980 a 2010. Esta expansão da escolaridade teve reflexos diretos na desigualdade de salários no mercado de trabalho porque, antes, quem era mais escolarizado recebia um salário muito maior. Além disso, a política de valorização do salário mínimo criou uma espécie de bolha de proteção para os menos escolarizados, reduzindo as diferenças entre homens e mulheres bem como brancos e não-brancos nesta faixa do mercado. A desigualdade regional no acesso a serviços básicos, como saúde, coleta de lixo, energia elétrica também caiu muito.

CC: E no campo político?

MA: No campo político, a competição política combinada a elevadas taxas de participação eleitoral, em um contexto em que a questão social veio para o centro da agenda política, criou fortes incentivos para que as demandas por expansão dos serviços sociais fosse atendida. Penso que o fato de o PT ter se tornado um partido competitivo à presidência da República desde 1989 foi um elemento importante desta trajetória. A partir do momento em que o Partido dos Trabalhadores se tornou competitivo, houve o desenvolvimento da politização da desigualdade e um aumento da competitividade política.

CC: Então, na sua opinião, a competição política é um elemento bastante importante na redução das desigualdades?

MA: Sim, mas não é apenas isso. Os Estados Unidos também têm competição política bastante acirrada e, desde 1970, a desigualdade econômica só tem aumentado. A competição política só tem efeito na queda das desigualdades se estiver combinada com a politização da questão social. Sempre houve pressão dos movimentos sociais para colocar essa questão na agenda política, mas essas demandas só ganham visibilidade quando vocalizadas por partidos políticos com conexões com os movimentos sociais. Por isso, se a ameaça eleitoral do PT desaparecer no futuro, sem que outro partido com viabilidade eleitoral mobilize essa questão, não há garantia que a questão social continue a ter importância na competição política.

CC: Alguns críticos dizem que no governo do PT não houve uma redução da desigualdade, mas da pobreza. A senhora concorda com essa definição?

MA: Isso é controverso e ainda não temos uma resposta definitiva. Tudo depende da definição de desigualdades. Thomas Piketty, por exemplo, diz que para examinar a desigualdade deve-se considerar o quanto o topo da pirâmide econômica se apropria do total da renda e incluir as receitas de ativos financeiros. Se adotamos este critério, de fato a desigualdade parece não ter sido reduzida no Brasil. No entanto, o próprio trabalho de Piketty mostra que esse tipo de redução da desigualdade só ocorreu em condições muito excepcionais, durante as Guerras Mundiais na Europa e no período soviético. Sob a democracia, expropriar o topo da pirâmide é algo muito raro historicamente. Uma vez no poder, os partidos de esquerda passam a temer as consequências eleitorais das crises econômicas e adotar politicas redistributivas que não ameaçam a acumulação e a riqueza do topo da pirâmide.

O Rio de Janeiro, a segunda cidade mais rica do País, ainda possui lugares onde a vida acontece em meio à pobreza, valas de esgoto e moradias improvisadas

CC: O Brasil ainda é um país em que os pobres têm dificuldade em se fazer representar na política?

MA: O Brasil tem uma participação eleitoral alta, em torno de 80% de presença nas eleições, o que mostra que os pobres também estão participando do processo eleitoral. Nos países com baixa participação eleitoral, a ausência dos mais pobres é proporcionalmente maior. Uma explicação fácil para esse resultado é de que o voto é obrigatório e que analfabetos podem votar. Creio que isto é importante, mas não é tudo. No Brasil, as votações acontecem aos domingos e, por isso, os pobres não precisam faltar ao trabalho para votar. Por isso, os custos da participação eleitoral são mais baixos do que em muitas democracias.

CC: O fim do voto obrigatório teria algum efeito na participação?

MA: Certamente, mas não sabemos muito bem quais seriam. Os partidos seriam forçados a buscar mobilizar o eleitorado a comparecer. Hoje, com a obrigatoriedade combinada à propaganda eleitoral gratuita na TV, os partidos têm de fazer um esforço bem menor para mobilizar o eleitorado do que nos países em que o voto é facultativo. Se as eleições deixarem de ser obrigatórias e ocorrerem em dias úteis, muitas pessoas podem decidir não faltar ao trabalho para participar do pleito. No entanto, o que me parece mais sintomático é saber porque a eliminação do voto obrigatório entrou para a agenda neste momento. A meu ver, isso faz parte de uma agenda conservadora que está emergindo no Brasil há alguns anos.

CC: Por que a senhora usa o termos “desigualdades” no livro? O estudo amplia a análise para outros setores, que não apenas a renda?

MA: Sim. Se considerarmos apenas a desigualdade de renda, notamos que houve mudanças importantes na base da pirâmide. Essas mudanças estão associadas com políticas de governo, como o Bolsa Família, a valorização do salário mínimo e o mercado de trabalho. No entanto, além da renda, o Brasil também teve mudanças importantes em sua oferta de serviços, acesso à educação, saúde e infraestrutura.

CC: Ainda existem diferentes Brasis?

MA: De forma geral, houve uma redução na trajetória das desigualdades tanto entre os indivíduos, quanto entre as regiões. Os dados aqui apresentados revelam que o Brasil mudou muito nos últimos 40 anos no que diz respeito à oferta estatal de serviços essenciais. Nos anos 1970, a ausência de serviços básicos — água, esgoto, energia elétrica — assim como baixos níveis de escolaridade eram generalizados em quase todo o território nacional. Nenhum município brasileiro tinha pelo menos 50% de sua população com mais de 15 anos com ensino fundamental completo. Dos 3 952 municípios existentes à época, só um tinha pelo menos 80% de sua população com acesso à rede de esgoto, apenas dez apresentavam esta taxa de cobertura para serviços de abastecimento de água e somente 73 tinham esta cobertura para energia elétrica. Os dados obtidos em 2010 mostram uma expressiva melhora, mas ainda guardam desigualdades importantes. Segundo o Censo de 2010, em 91% dos municípios brasileiros, pelo menos 10% da população não tinha acesso à energia elétrica. Em outros 2.190 municípios, ou seja em 40% das cidades brasileiras, cerca de 20% da população não contava com serviços de coleta de lixo.

CC: A redução das desigualdades é um caminho sem volta?

MA: De 1970 para cá, houve avanço importantes, o que revela que as desigualdades não são imutáveis. Por outro lado, a queda da desigualdade no Brasil foi resultado de muitos fatores combinados em um momento no tempo. Estes fatores têm trajetória independente. Por exemplo, a queda nas taxas de fertilidade é um caminho sem volta. Já o fator da escolarização que afetou o comportamento do mercado de trabalho não é um caminho sem volta. Há estudos que mostram que o aumento da desigualdade nos Estados Unidos tem a ver com a redução na oferta de educação. O mecanismo de redução da desigualdade pela via da valorização do salário mínimo também não é um caminho sem volta, porque é resultado de uma decisão política. Por isto, não há nenhuma garantia de que seguiremos uma trajetória semelhante à que vivemos nas últimas duas décadas no futuro próximo.

CC: O País passa por um momento de ajuste fiscal que, segundo o governo, é necessário para criar um ambiente de igualdade de oportunidades. Nos 12 anos do PT no poder, o problema da fome foi equalizado, mas o partido e o Brasil estão prontos para dar o segundo passo no enfrentamento das desigualdades?

MA: O Brasil está longe de estar pronto pois as desigualdades não foram resolvidas. Os últimos 25 anos mostram que a desigualdade não é imutável, mas as desigualdades ainda são muito grandes. Em 2010, cinco em cada dez casas ainda não tinham acesso a esgoto. Ou seja, a questão social ainda é importante no Brasil. É preciso avaliar os avanços com calma porque esses processos são de longo prazo e dependem de muitos fatores, às vezes alheios à vontade dos governos. Além disto, estas mudanças são sempre incrementais. A Inglaterra, por exemplo, demorou três décadas para universalizar o acesso ao Ensino Fundamental.

CC: O fato de o ajuste fiscal afetar as políticas de inclusão por meio de programas sociais indica que esses programas chegaram a um limite?

MA: Todas as democracias modernas, que já tem programas sociais amplos, têm de enfrentar os conflitos entre a imposição de um equilíbrio fiscal e as pressões por redistribuição. Isto gera um conflito sobre quem vai arcar com os custos. Essa dinâmica faz parte das democracias com programas sociais consolidados.

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