O dia 17 de abril de 2016 entrará para a história como uma data controversa. Foi naquele domingo que a Câmara dos Deputados votou pelo prosseguimento do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), eleita em 2014 com 54,5 milhões de votos. Encorajado por uma série de manifestações populares fomentadas pela mídia tradicional, o plenário aprovou “por Deus, pela pátria e pela família”, o encaminhamento do processo para o Senado, após nove horas e 47 minutos de sessão. O motivo principal, mais que o suposto crime de responsabilidade do qual Dilma foi acusada, era levar ao poder um governo que aplicasse um pacote de retrocessos que jamais seria aprovado nas urnas, como defendem movimentos sociais e analistas.
Pelas acusações, Dilma teria cometido crime de responsabilidade por ter assinado decretos de créditos suplementares e cometido as chamadas “pedaladas fiscais”. O debate foi árduo, visto que as práticas foram utilizadas por governos anteriores, bem como por diferentes estados. Argumentos à parte, naquele 17 de abril os tais “crimes” foram pouco citados durante a sessão.
O pedido de impeachment foi elaborado pelos juristas Janaína Paschoal, Miguel Reale Jr, que foi ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso, e Hélio Bicudo, que chegou a ser vice-prefeito de São Paulo no governo de Marta Suplicy (do PT, entre 2001 e 2005). “Eu acho que a saída da Dilma não vai gerar trauma algum. As pessoas vão respirar fundo, dizendo: ‘Puxa, saiu'”, previu Bicudo em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em setembro do ano passado.
“Mais do que parar para refletir sobre o impeachment, que tem motivos de sobra, queremos servir a uma cobra? Nós somos muitos migueis, muitas janainas, não vamos deixar essa cobra dominando porque somos seres de almas livres”, disse Janaina durante uma aula pública na Faculdade de Direito da USP, no início de abril. “Não vamos abaixar a cabeça. Desde pequenininha que meu pai me diz ‘Janaína, Deus não dá asa para cobra’. E eu digo: ‘Pai, às vezes, a cobra cria asa. Mas Deus manda uma legião para acabar com a cobra’. Acabou a República da cobra! Fora PT, fora jararaca”, bradou, em menção a um discurso de Lula feito após sua condução coercitiva pela Lava Jato.
Se o discurso de Janaína foi visto por muitos como parte de uma performance exaltada, era fato que também traduzia o ódio que cegava alguns dos opositores do governo Dilma. O documento do qual ela havia sido uma das signatárias foi entregue à Câmara em setembro de 2015. Antes disso, 30 pedidos já haviam sido protocolados na Casa e considerados insuficientes para abertura do processo. No dia 2 de dezembro de 2015, Cunha acolheu o pedido um dia após, como então presidente da Câmara, ter enfrentado uma derrota no Conselho de Ética, onde era alvo de investigação por quebra de decoro parlamentar. Na ocasião, o PT havia fechado questão contra o peemedebista, o que teria o motivado a aceitar o processo contra a presidenta.
Desde então, Cunha – hoje cassado e preso por corrupção – foi o maior agente do impeachment. “Não tínhamos noção completa de quem ele era, não imaginávamos o tamanho da serpente. Serpente criada, apareceu pronto para o que veio. Foi venal, usou todas as possibilidades para conseguir aprovar o impeachment”, avalia Roseli. “Temos que lembrar também do juiz Sérgio Moro. Ele tomou atitudes ridículas, como a condução coercitiva do (ex-presidente) Luiz Inácio Lula da Silva, e atitudes criminosas como o vazamento de conversas entre a presidenta e Lula para a TV Globo. O cerco midiático enfraqueceu muito o PT.”
Em março no ano passado começou o trâmite em comissão especial na Câmara, que culminou em um relatório do deputado Jovair Arantes (PTB-GO) a favor da abertura do processo de impeachment. O cerco contra Dilma foi montado até o dia 17 de abril, quando o plenário da Casa decidiu pela continuidade da tramitação. Foram 367 votos a favor e 137 contra. A sessão foi presidida por Eduardo Cunha (PMDB-RJ), então presidente da Câmara e então firme opositor do governo da petista.
“Terra da Lava Jato, avante!”, bradou o parlamentar Diego Garcia (PHS-PR) como sua justificativa para seu voto a favor do impeachment. “Eu, junto com meus filhos e minha esposa que formamos a família do Brasil, que tanto esses bandidos querem destruir com propostas de que crianças troquem de sexo e aprendam sexo nas escolas com 6 anos de idade, meu voto é sim”, proferiu o deputado Delegado Éder Mauro (PSD-PA). “Por causa de Campo Grande, a morena mais linda do Brasil, o voto é sim”, disse Mandetta (DEM-MS). “Pela paz de Jerusalém, eu voto sim”, justificou Ronaldo Fonseca (Pros-DF).
O voto foi dado por parlamentares que conhecem de perto a Justiça. Na época do processo, 150 dos 513 integrantes da Câmara, entre apoiadores e adversários de Dilma, eram investigados no Supremo Tribunal Federal (STF), em inquéritos e ações penais. As acusações variavam de crime de responsabilidade – como o atribuído a ex-presidenta – a corrupção, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e desvio de verba pública. Ao menos 23 deputados que participarem da votação eram suspeitos de ter recebido recursos desviados da Petrobras, inclusive o próprio Cunha. Deles, 17 votaram pela cassação de Dilma.
O caso mais emblemático, além do presidente da Câmara, foi o do marido da deputada Raquel Muniz (PSD), o ex-prefeito de Montes Claros (MG), Ruy Adriano Borges Muniz (PSB). Ele foi preso algumas horas depois da votação, em Brasília, em uma operação da Polícia Federal. “Meu voto é em homenagem às vítimas da BR-251. É para dizer que o Brasil tem jeito e o prefeito de Montes Claros mostra isso para todos nós com sua gestão. Meu voto é por Tiago, David, Gabriel, Mateus, minha neta Julia, minha mãe Elza. É pelo norte de Minas, é por Montes Claros, é por Minas Gerais, é pelo Brasil. Sim, sim, sim”, disse veementemente a deputada durante a sessão.
“Foi um patético episódio ter deputados votando ‘contra a corrupção’ e, passado um tempo, o governo atual está atolado em processos, ministros caíram e alguns dos parlamentares hoje estão presos”, lamenta Raimundo Bonfim, um dos coordenadores da Frente Brasil Popular, que organizou movimentos sociais na defesa da ex-presidenta. “O golpe não foi para combater a corrupção nem para recuperar a economia. Foi para travar a Operação Lava Jato, como mais tarde disse Romero Jucá (senador pelo PMDB-RR, em diálogo gravado com o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado).”
O espetáculo de 17 de abril, transmitido em rede nacional e acompanhado por milhões de pessoas, foi talvez o episódio mais constrangedor de um processo iniciado meses antes dentro e fora do Congresso. “Talvez o primeiro momento chave tenha sido quando o Eduardo Cunha (PMDB-RJ) lançou sua candidatura à presidência da Câmara. O PT acabou colocando na disputa um candidato sem expressão (Arlindo Chinaglia, de São Paulo), em oposição ao PMDB”, observa a professora Roseli Coelho, do Departamento de Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp).
A novela do impeachment
Em 26 de abril de 2016, após a Câmara aprovar o prosseguimento do processo de impeachment, o Senado instalou sua comissão especial, onde o senador Antônio Anastasia (PSDB-MG) elaborou relatório, aprovado por 15 votos a 5, em 6 de maio, a favor da abertura do processo de impedimento da presidenta na Casa.
No dia 11 do mesmo mês, em uma sessão que durou mais de 20 horas, terminando no dia seguinte, o plenário do Senado aprovou por 55 votos a 22 o parecer de Anastasia. A presidenta foi afastada das suas funções até a conclusão de seu julgamento e, em 13 de maio, Michel Temer assumiu a presidência da República de forma interina.
Após muitas negociações e um bombardeio midiático a favor do impeachment, um novo relatório de Anastasia foi aprovado, agora a favor do impedimento da presidenta eleita, em 4 de agosto. No dia 9 tem início a sessão no plenário que definia a aceitação ou não do parecer do senador mineiro, determinando se Dilma se tornaria ré no processo.
Na ocasião, o defensor de Dilma, José Eduardo Cardozo, leu no Senado, de forma enfática um texto conciso, por ele elaborado. “A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 1º, afirma textualmente que o Brasil é um Estado Democrático de Direito. E ao assim fazê-lo, deixa claro que nós vivemos sob o império da lei ao mesmo tempo em que vivemos sob o império da democracia”, disse em suas primeiras palavras.
Para o advogado, a motivação para o processo do impeachment não possuía bases legais, e sim políticas. “Ao contrário do que acontece nos regimes parlamentares, um presidente da República não pode ser afastado por razões puramente políticas. Ele não pode ser afastado, ao contrário do que nos que fazer crer a acusação, pelo conjunto da obra. Quem afasta um presidente pelo conjunto da obra é o povo, nas eleições.”
Um dos pontos centrais da defesa foi de que um presidente não pode ser julgado por atos cometidos anteriormente ao seu mandato, como era o caso das “pedaladas”, então anexou-se aos autos outro ponto. “Todos os fatos invocados estavam fora do mandato da presidente. Eduardo Cunha sabia disso, e por isso abriu o processo em relação a duas acusações que foram muito pouco referidas pelo adverso. Acusou que foram firmados decretos de abertura de créditos suplementares (…) Esses são os fatos em discussão (…) Quando um acusador foge desse debate é porque seguramente algo está frágil no seu raciocínio, na sua acusação”, disse.
Além de acusar a oposição de fugir do debate, como já fora notado na Câmara, onde as justificativas para as sentenças foram as mais absurdas e alheias ao processo, Cardozo questionou o trabalho do relator do processo na Casa, Antônio Anastasia (PSDB-MG). “O senador Anastasia enfrentou os debates em seu relatório, mas o fez, sinceramente, dominado pela paixão partidária. Sua excelência, basta ler o relatório para ver que o nobre relator trunca testemunhas, cita pareceres do TCU que não dizem o que ele diz que citam”, completou.
O processo encontrou seu ápice no final de agosto. No dia 29, a própria Dilma foi ao Senado se defender em um depoimento que durou 15 horas.
“O que está em jogo no processo de impeachment não é apenas o meu mandato. O que está em jogo é o respeito às urnas, à vontade soberana do povo brasileiro e à Constituição”, disse. “No passado da América Latina e do Brasil, sempre que interesses de setores da elite econômica e política foram feridos pelas urnas, e não existiam razões jurídicas para uma destituição legítima, conspirações eram tramadas resultando em golpes de Estado”, apontou em seu depoimento no Senado.
“Ela se saiu muito bem, sua defesa foi muito boa, um ótimo momento dela, que não conseguiu sempre ser tão boa. Também temos que lembrar de seu advogado José Eduardo Cardozo. Ele fez um trabalho muito decente, técnico e empenhado. Não foi relapso em nenhum momento. Acrescento o Lula, que se mudou para Brasília a fim de negociar uma votação favorável para Dilma. Ele foi fantástico”, afirma Roseli.
Mas o desempenho da presidenta no Senado não foi suficiente para mudar seu destino, que parecia selado desde 17 de abril. Em 31 de agosto, por 61 votos a favor e 20 contrários, Dilma teve seu mandato cassado.
Divisor de águas
O impeachment de uma presidenta democraticamente eleita foi considerado por especialistas um divisor de águas na política nacional, interrompendo um período de redemocratização do país que vinha se consolidando desde o fim da ditadura civil-militar, em 1985. “Agora voltamos para um período autoritário. O mandato de uma presidenta legitimamente eleita foi interrompido neste processo de golpe parlamentar”, defende a professora Roseli.
O afastamento de Dilma, tido como golpe por parte do meio acadêmico, político e dos movimentos sociais, alterou radicalmente a orientação política do país. “O principal retrocesso foi o ataque à democracia. O impeachment tem previsão legal na Constituição, desde que o presidente cometa crime de responsabilidade e isso não ficou provado, tanto que o Senado não inabilitou Dilma na votação final”, diz Raimundo Bonfim. “Não havia justificativa nem elemento jurídico para o impeachment. É um retrocesso sem precedentes, que nos leva para antes de 1988 (quando foi aprovada a atual Constituição).”
Todo o contexto da votação do impeachment, em que os deputados sequer debateram o crime de responsabilidade, somado às acusações de corrupção do governo que assumiu, comandado por Michel Temer, ajudaram a ampliar o sentimento de desprezo da população pela classe política.
“O que podemos dizer é que as pesquisas que questionam sobre o prestígio da classe política apontam um cenário terrível. É cada vez mais baixo, o espetáculo daquele dia colabora para isso”, afirma Roseli. “O mais importante, impactante e cruel deste momento é a aprovação de medidas que cortam de modo criminoso os direitos dos trabalhadores. A mais clara que posso dizer no momento é a aprovação da flexibilização da terceirização. Isso é uma derrota para os trabalhadores, é rasgar as leis trabalhistas”, afirma.
Para Roseli, a velocidade dos movimentos de mudança do governo Temer contam, além do apoio do Congresso, com outro importante aliado. “Assim como a grande imprensa apoiou tudo que dizia respeito ao golpe, ela passou a aprovar quase que incondicionalmente o governo Temer. Assim, grandes veículos, como Folha, Estado e Globo, passaram a apoiar seu governo e suas medidas. De vez em quando aparece alguma crítica, mas muito pontual. E nos últimos meses menos ainda, eles estão apostando tudo no Temer, que vai tornar as relações de trabalho mais favoráveis aos empresários patrões e vulnerabilizar a classe trabalhadoras”, diz. “Passamos para um período cinzento, no mínimo.”
Caixa de Pandora
Mais do que uma guerra de forças entre PT e PDSB, que ganhou força na sociedade durante a eleição presidencial de 2014, para analistas, o que estava em jogo com o impeachment era aprovar um pacote de retrocessos e cortes de direitos que jamais venceria uma eleição. “Ninguém votou nesta pauta, mas tudo indica que o governo Temer, aliado ao Congresso, está disposto a fazer todo o trabalho sujo, até se aproveitando de uma baixa popularidade”, diz Roseli.
“Foi um golpe na população toda porque o programa que está sendo implantado sequer foi debatido nas urnas. Mesmo Aécio Neves (candidato tucano à presidência) nunca apresentou para o eleitorado que iria alterar a legislação trabalhista ou elevar a idade mínima de aposentadoria para 65 anos”, diz Bonfim. “Além da presidenta não ter cometido crime de responsabilidade, tomaram o governo de assalto para aplicar um programa que não foi defendido por ninguém. O presidente Temer disse que está fazendo essas medidas impopulares porque não tem preocupação com popularidade. Claro, ele não foi eleito…”
A baixa popularidade de Temer, de certa forma, revela a força do Parlamento, responsável direto pelo impeachment de Dilma, segundo a professora. “Como o presidente não tem apoio nas ruas, ele depende muito do Congresso. E os parlamentares conseguem tirar dele favores em troca da aprovação medidas impopulares. Por outro lado, existe uma cobrança de empresários, de modo geral. Uma cobrança de todos aqueles que são grandes empregadores”, afirma.
“Após a ruptura democrática começamos a sofrer uma série de retrocessos que atingiram em cheio a classe trabalhadora. Um dos principais foi o congelamento dos investimentos federais em políticas sociais por 20 anos (pela Emenda Constitucional 95, promulgada em dezembro). Mesmo com o crescimento demográfico, os reajustes serão apenas com base no índice inflacionário do ano anterior. Como faremos?”, questiona Bonfim.
O coordenador da Frente Brasil Popular lembra que o governo Temer interrompeu todo um processo de participação que vinha sendo construído desde o primeiro governo Lula por meio de conferências, congressos, conselhos e outros espaços de construção de políticas públicas. Além disso, destaca como retrocessos o fim de alguns programas sociais, como o Minha Casa, Minha Vida. “No último dia 30 tivemos grandes atos em várias cidades do país contra os retrocessos como no Fies, no programa Ciências Sem Fronteiras, na reforma agrária, na reforma urbana e na reforma do ensino médio.”
“Na última escala estão os direitos sociais: a terceirização, que ainda não se consumou e esperamos que consigamos resistir, e as reformas da previdência e trabalhista, que serão o maior retrocesso de todos, porque atingem todos os trabalhadores de forma geral. A trabalhista fomenta a precarização das relações de trabalho e vai colocar o empregado refém do empregador. A reforma da Previdência vai alterar o maior programa social do Brasil. Vamos estar nas ruas para resistir.”
“Somente através de um golpe essas medidas conseguem ser aprovadas”, defende Roseli. “Não é possível, eles tiram uma presidenta eleita e, em seguida, um presidente ilegítimo assume uma agenda de reformas que nem no governo Fernando Henrique Cardoso saíram da gaveta.”
A professora ainda mostra preocupação com o clima criado por uma agenda de ataques a direitos. “O ministro Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declarou que a Justiça do Trabalho é um ‘antro de petistas’. Isso faz parte de uma ofensiva contra os direitos do trabalho. Uma manifestação dessas jamais aconteceria em um governo como Dilma e Lula. Esse governo é ilegítimo, francamente de direita e fortemente contra os direitos da classe trabalhadora. Isso cria um ambiente propício para esse tipo de declaração. O Gilmar Mendes deveria ser processado por essa declaração, mas existe esse ambiente.”
“Para o país ter uma recuperação econômica é preciso ter confiança dos investidores e dos consumidores e hoje isso não existe: temos um governo ilegítimo que ninguém sabe se cai ou não. Do ponto de vista capitalista, quem se arisca a comprar uma casa agora? A confiança das famílias na economia está caindo, o Estado arrecada menos, tem menos recursos para investir nas políticas sociais e isso gera desemprego”, diz Bonfim. “Lula pode voltar em 2018 e não ter mais Estado para fazer os programas sociais que fez porque se desmontou tudo. Por isso precisamos reverter essa situação agora. 2018 é agora.”