Entidades de defesa dos direitos de crianças e adolescentes e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, defenderam cautela no debate sobre maioridade penal. As observações foram feitas após declaração do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), sobre redução da maioridade penal, em meio ao calor provocado pelo assassinato de um jovem na zona leste da capital paulista.
Alckmin defendeu hoje (11), durante conversa com jornalistas, mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para punir mais severamente os casos considerados graves e de reincidência. “Mais uma vez é um menor de 18 anos de idade. Ele vai ficar apenas três anos na Fundação Casa e vai sair com a ficha limpa, embora seja um caso grave e reincidente. Nós estamos preparando um estudo, um projeto e em 15 dias nós vamos enviar ao Congresso Nacional.”
O debate foi motivado pelo assassinato do estudante Victor Hugo Deppman, de 19 anos, morto por um adolescente de 17 anos, em um assalto na porta de casa, no Belém, zona leste, na última terça-feira (9). Na visão de movimentos da sociedade civil, a proposta não atacaria as causas da violência e não contribuiria para sua eliminação. Mais eficaz seria o cumprimento das obrigações do Estado brasileiro, com políticas públicas voltadas à preservação de direitos, como educação, cultura e trabalho. Sem isso, reduzir a maioridade penal seria apenas outro ato de violência.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, recordou que a redução da maioridade penal viola a Constituição. “Em relação a ouras propostas (de Alckmin), vou me reservar o direito de analisá-las após o seu envio. Assim que eu conhecer o texto vou analisar e me posicionar”, disse a jornalistas após participar de audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo sobre violência. “São situações que nos atingem, nos entristecem, e nos instigam muito a desenvolver ações preventivas e repressivas. Mas precisamos ver quais são as melhores ações. Por isso quero examinar antes o projeto para me posicionar. Projetos de lei que respondem a situações têm de ser muito bem analisados e temos de tomar cuidado com o calor do momento. Por isso quero analisar antes de me posicionar.”
Para o coordenador nacional da Pastoral da Juventude, Júlio César Fernandes, reduzir a maioridade penal sem observar outras questões sociais relacionadas à violência não vai resolver o problema. “Não adianta olhar para a situação e tentar resolver punindo, temos de olhar a raiz do problema e atacar lá. Essa medida só será valida para a parte pobre da sociedade, pois infelizmente a justiça não é igual para todos. O poder público tem o dever de oferecer politicas públicas para garantir educação, emprego, acesso à cultura. E de fazer valer o Estatuto da Criança e do Adolescente”, disse. “Acredito que um politico, quando defende essa redução, está assinando publicamente um atestado de incompetência administrativa.”
O militante da Pastoral da Juventude defende ainda que a decisão não pode ser tomada exclusivamente pelos parlamentares, ouvindo clamores de uma parcela da população. “A princípio deve-se colocar a discussão na rua, não dá para seguir com isso sem propor debates e apresentar claramente para a sociedade quais seriam as consequências desse ato”, pondera.
Fernandes acha questionável o uso de casos que provocam comoção, como o do estudante assassinado, como bandeira para a redução da maioridade penal. “É muito fácil propor medidas de senso comum. Afinal, muitas pessoas que não fazem nenhum tipo de discussão a respeito e compram essa ideia. Sensibilizo-me com a dor dessa mãe e compreendo essa revolta. Mas se esse jovem que matou o filho dela tivesse recebido oportunidades de vida que vão contra esse sistema, sem sombra de dúvidas, o filho dela estaria vivo hoje”, afirma.
O secretário de Gestão do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente de Interlagos (Cedeca), Tuto Wehrle, acrescenta que há um discurso contraditório na redução da maioridade. “Os mesmos setores que defendem a redução não se esforçam no sentido de ampliar as políticas públicas para atenção plena a essas pessoas. O sistema prisional adulto não chega a ser nenhuma alternativa às situações de violência que vivemos hoje no Brasil. Isso já foi dito por entidades internacionais, não é uma questão de um ou outro local, é todo o sistema. Aplicar aos adolescentes uma receita que já se demonstra ineficaz aos adultos não resolverá o problema”, sustenta. “O problema não está no final da linha, mas no início. O Brasil tem milhares de crianças e adolescentes em situação de total vulnerabilidade de seus direitos sociais. Serem alguns deles atores de atos infracionais é uma lógica absolutamente evidente. Sem resolver isso, podemos reduzir a maioridade penal infinitamente que não irá produzir resultados.”
Evolução e retrocesso
O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), criado para aprimorar as políticas de reabilitação de menores em conflito com a lei, continua longe de ser colocado em prática. Sancionado em janeiro de 2012, propõe uma série de medidas socioeducativas priorizando e articulando educação, saúde, assistência social, lazer, cultura, esporte e profissionalização. Além disso, propõe a separação dos jovens por tipo de ato infracional cometido. O objetivo é garantir a reinserção social dos jovens em conflito com a lei. No entanto, o sistema esbarra em diversos obstáculos, como atraso na elaboração do plano nacional, que vai conduzir a elaboração dos planos estaduais e municipais.
De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, aproximadamente 17 mil jovens cumprem medidas de privação de liberdade. Das 318 unidades de internação que existem no país, somente 41 estão adequadas aos padrões arquitetônicos estabelecidos pelo Sinase, com espaço para atividades físicas e a limitação a três jovens por dormitório, por exemplo. Dos 5.565 municípios brasileiros, apenas 636 já municipalizaram seu atendimento, como determina a lei, ou estão em fase de implementação.
Na contramão desse processo, pensando a partir da lógica punitiva, existem hoje duas propostas de emenda à Constituição (PEC), três projetos de lei do Senado e um projeto de lei da Câmara, propondo a redução da maioridade penal. Há também uma proposta de plebiscito para consultar a população sobre o tema e uma PEC antiga, a de número 20, de 1999, que agrupa várias outras de igual teor.