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Gaúchos lidam com o retorno para casa: ‘Não é tragédia, é descaso do poder público’

Mais de 96% do Rio Grande do Sul foi impactado pela catástrofe climática

Fabiana Reinholz/Brasil de Fato
Fabiana Reinholz

“Começamos a limpar, foi muito triste, mas não adianta tu chorar, fazer o quê? Tem que começar tudo de novo”.

Há praticamente 30 dias longe de casa, pessoas desalojadas por conta das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul aos poucos vão retornando para casa. Na volta, além de contabilizar os estragos, começam o processo de limpeza, onde aquilo que foi um dia útil, como colchões, sofás, móveis, brinquedos, tornam-se lixo, entulho, que vão se acumulando pelas ruas das cidades.

De acordo com o último boletim da Defesa Civil, dos 497 municípios gaúchos, 476 foram impactados, afetando mais de 2,3 milhões pessoas. O estado contabiliza, até o momento, 572.781 desalojados climáticos (ou refugiados). Mais de 30 mil pessoas ainda permanecem em abrigos. Algumas áreas nos bairros, em cidades como Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo, ainda registram alagamentos.

Na quinta-feira (30), a equipe do Brasil de Fato RS andou pelas imediações da estação de trem Mathias Velho, em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre. No domingo (2), dia de sol, a reportagem percorreu o entorno da estação Rio dos Sinos, em São Leopoldo, e Santo Afonso, em Novo Hamburgo. Em comum no desabafo dos moradores, a incredulidade de que as águas avançariam e o sentimento de recomeço em meio à incerteza.

Leia mais: Enchentes no RS afetam a indústria e podem prejudicar ainda mais trabalhadores

“É uma mistura de tristeza, dor, desespero”

O casal João Soares, enfermeiro, e Viviane Luisa Dummer, cuidadora, mora há um ano e meio de aluguel no bairro Mathias Velho, um dos mais atingidos pelas enchentes em Canoas.

Com máscaras, roupa de proteção e botas, o casal conta que deixará a casa e se mudará para outro local. No dia que eles conversaram com o Brasil de Fato RS era aniversário de Viviane. “É o aniversário mais surreal da minha vida”, pontua.

“É uma mistura de tristeza, dor, desespero. A gente vem pra cá de manhã e fica até às quatro, cinco horas limpando. Vimos o que dá pra salvar e o que não jogamos fora. Eu limpei minha geladeira, meu microondas, todos os eletrônicos que eu posso limpar. A sorte é que a nossa geladeira é ainda dessas novas, parece que tem como salvar. E tem o cheiro que é horrível”, conta Viviane.

O casal comenta que a água subiu até o forro da casa. Ao recordar o dia em que a água chegou ao bairro, eles contam que houve um alerta, mas que não imaginavam que ela fosse subir tão rapidamente.

“Eu vim pra casa tranquila, descansar, a partir das três e meia, quatro horas da manhã da sexta-feira (3), a gente viu muito movimento fora do normal. E lá pelas cinco e meia da manhã, a gente achou que era muita coisa. Levantamos, tomamos uma xícara de café, dobramos a esquina, e a água já estava na praça. Corremos pra dentro de casa, levantamos as coisas que a gente pôde levantar. Começamos a juntar documentos. Eu abri as três malas e comecei a botar roupas dentro. A água já estava na porta.”

Eles ficaram na casa de amigos e parentes durante o tempo que estiveram desalojados. João conta que, ao voltar para casa, mesmo tendo uma ideia de como encontraria o local, foi assustador. O casal fez o cadastro para receber o auxílio do governo. “Vamos ver o que vai dar pra fazer com esse plin-plin.Você sabe que hoje em dia está muito difícil conseguir as coisas, é uma batalha incrível. A cada ano que passa está difícil, mas a gente consegue”, pontua João.

Auxílio Reconstrução, benefício do governo federal para atingidos pelas enchentes no Rio Grande do Sul, será pago a mais 61,6 mil famílias nesta quinta-feira (6). De acordo com a Caixa Econômica Federal, até o momento, 99,8 mil beneficiários, incluindo os de hoje, receberam os recursos. Foram disponibilizados R$ 510 milhões para desabrigados e desalojados pelas cheias no estado.

Para Viviane, a parte mais difícil será a reconstrução. “É resgatar tudo aquilo que tu passou uma vida inteira, de passo em passo, adquirindo, trabalhando, sonhando, aí tu perde tudo. Agora tu não sabe se vai conseguir, no primeiro lugar, a gente não vai conseguir morar aqui porque a casa está desabando. O piso levantou, as paredes incharam”, relata.

“Provavelmente nós vamos perder até as casas”

Também moradora do bairro Mathias Velho, a presidenta do Sindicato dos Motoristas de Transporte Individual por Aplicativo do Rio Grande do Sul (Simtrapli-RS), Carina Trindade, 45 anos, ficou com a casa de madeira submersa e precisará demolir o que restou do imóvel. “A casa movimentou meio metro e abriu todo assoalho, e deslocou da parte de material que é o banheiro. O cheiro é insuportável dentro das duas casas, do assoalho, o cheiro podre que exala das paredes, parecido com esgoto, não sai. Estamos fazendo uma vaquinha para conseguir verba para construir os quartos de novo. Vamos fazer uma casa só.”

Carina já recebeu a parcela do auxílio emergencial do governo federal. Trabalhadora autônoma, Carina está um mês sem trabalhar. “Estou dando prioridade para a limpeza da casa, e posteriormente a reconstrução”, relata. Carina está há 30 dias hospedada na casa de amigos em Cachoeirinha.

No dia 22 de maio, após reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto, o CEO da Uber, Dara Khosrowshahi, anunciou que a empresa destinaria R$ 10 milhões para auxiliar os motoristas do aplicativo que foram afetados pelas enchentes no Rio Grande do Sul. De acordo com a empresa, cerca de 20 mil condutores cadastrados receberão R$ 500 cada.

“Eles anunciaram essa ajuda mas não foi para todos os motoristas. É só para aqueles motoristas que fazem mais corridas. A maioria que perdeu tudo, inclusive carros, não ganhou nada. Eu não ganhei o valor da Uber porque não faço o número de corridas.”

Com 347.657 habitantes, Canoas teve 44% da população afetada. É a cidade com o maior número de mortos, com 30 óbitos. De acordo com a plataforma criada pelo governo estadual que monitora os abrigos do estado, a cidade tem o maior número de desabrigados, com 6.362 pessoas, seguida de Porto Alegre, com 5.675, e São Leopoldo, com 4.097.

A cidade é a terceira mais populosa do estado, respondendo por quase 27% do total de pessoas desabrigadas em consequências das chuvas. O município também está entre as cidades com maior porcentagem da população em domicílios particulares atingidos, ficando atrás de Eldorado do Sul, que teve 80,8% e Muçum, com 66,3%, segundo informações divulgadas pelo governo estadual na última quinta-feira (30).

“Não é tragédia, é descaso do poder público”

Moradores da Vila Braz, em São Leopoldo, há quatro meses, o casal Vladimir Medeiros e Maria Cristina Flores, ambos de 45 anos, saíram do litoral, onde moravam, a procura de trabalho, na cidade da região metropolitana. “Estava tudo bem até acontecer isso”.

Funcionário de uma terceirizada que presta serviço à prefeitura, Vladimir reforça que o que aconteceu não é tragédia e sim descaso do Poder Público. “É comporta em Porto Alegre que não veda, sem manutenção há anos. É o dique improvisado. Quando começa a dar problema com os poderosos, porque eles são responsáveis pela administração do dinheiro público, eles resolvem se mexer. Mas aí, né, aconteceu, um monte de morte é complicado”.

“Quando vimos a água estava no tornozelo”. O casal ficou na casa da mãe de Maria, na cidade vizinha, Novo Hamburgo. Ao voltar para casa, o casal afirma que era uma visão de uma guerra. “Parece que passou um tornado. Todo mundo colocando as coisas para fora, até pessoas que nem tinham quase nada. Nós perdemos o que tínhamos, mas ficou a vida né? Agora é recomeçar.” Por estarem cadastrados no CadÚnico, o casal já está recebendo o auxílio.

“Não sei o que a gente vai fazer da vida”

“Há 40 anos moro aqui. Foi a primeira vez que vejo uma situação como essa. Meu marido já passou por uma, mas nada como essa. Depois que limpar, estou pensando em ir embora porque estão dizendo que pode vir outra enchente, e eu não vou ficar aqui pra esperar”, afirma a moradora do bairro Santos Dumont, São Leopoldo, Juraci Freitas, 70 anos.

Como muitos, quando veio o aviso, Juraci não acreditava que água chegaria até a sua casa. “A gente pensou: da outra vez veio até ali na esquina, a água não veio até aqui. Eu disse pro meu marido também acho que não vem. Na sexta, o meu filho, Guilherme, que mora em Novo Hamburgo, só me ligou e disse assim, mãe, prepara uma mala, que eu vou te buscar agora. Saímos com uma malinha e a roupa do corpo. O resto ficou.”

A casa de Juraci possui uma câmera, e ela pôde acompanhar o desenvolvimento da enchente. “A água estava vindo lentinha, mas meu filho não quis arriscar de voltar lá, já que havia lugares onde a água estava mais alta. A água veio até a altura da câmera, acho que deu um curto, o portão abriu e câmeras pararam de funcionar. A gente pedia para os canoeiros que passavam aqui para dar uma olhada e tirar uma foto. A água baixou muito lentamente”.

O casal ainda está na casa do filho em Novo Hamburgo, mas começaram a limpeza na semana passada. Ao chegar em casa, o cenário era o que se repete em todos aqueles em que as águas cobriram as residências: tudo revirado. “Desastre total. Olha o monte de roupa que eu tinha que vai pro lixo. Mas coo minha mãe dizia, vão-se os anéis, ficam os dedos. Eu nem sei o que a gente vai fazer da vida. Não sei”, desabafa.

O casal se cadastrou para receber o Auxílio Reconstrução e aguarda a aprovação para que possam repor o que foi perdido.

Ao se despedir, o marido de Juraci comenta sobre o entreposto próximo a linha do trem. “Além do lixo das ruas, tem aquele monte sendo colocado ali”.

De acordo com o executivo municipal, já foram recolhidos mais de 85 mil toneladas de resíduos na cidade. “Tem alguns locais centralizados nas regiões como é o caso desse da estação Rio dos Sinos onde os caminhões que estão no bairro deixam ali os resíduos e dali são colocadas em carretas maiores para o destino lá no aterro no átrio da manteiga”. A estimativa é que até 60 dias todo o lixo das ruas seja retirado.

“Estão botando tudo ali, porque não tem como ficar aqui, porque o cheiro é demais. Não tem como ficar com os lixos na frente da casa, só pra juntar mais ratos. É preciso que eles tirem logo o lixo das ruas”, afirma Noeli Pereira, também moradora do Santos Dumont, do outro lado da linha do trem e mais próximo ao rio.

Naquele domingo de sol, ela e o marido limpavam a casa que eles tinham comprado no dia que teve início a enchente. “Eu me mudei não faz nenhum um mês, antes eu morava de aluguel na rua de baixo. Eu me mudei porque ali não deu mais. No dia da enchente fomos olhar o rio, ele não estava tão cheio. Eu disse: ‘A água não vai vir’. Quando eu entrei ali pra dentro de casa, a água começou a subir, subir, subir e não parou mais”.

O casal ficou abrigado no município de portão, onde o marido ainda possui uma residência. Eles voltaram na segunda-feira da semana passada. Noeli acreditava que água não chegaria no novo endereço, mas ela chegou e foi até o teto. “Agora vamos ter que ficar aqui, fazer o que. A gente comprou. Perdemos tudo, estou tentando resgatar o sofá que comprei e a minha cama”.

Ela se cadastrou no auxílio do governo e o processo está em análise. Noeli tem ido constantemente na prefeitura para cobrar a liberação do recurso, que, segundo ela, aparece ainda como bloqueado. “A gente faz o cadastro e tem que esperar um monte, sempre tá dando erro. Uns que nem entraram água dentro de casa estão ganhando.”

Sobre a casa alugada onde viveu por quatro anos, Noeli conta que a dona do imóvel ainda não sabe o que fazer. “Provavelmente ela vai desistir. A janela não fecha, a porta inchou, trancou. Ali sempre entrava água. Um mês antes de eu me casar com ele, a água veio na cintura”.

Nesta sexta-feira (7), atendentes da Caixa Econômica Federal estão em frente ao antigo prédio da Prefeitura de São Leopoldo, na Praça Tiradentes, esclarecendo as dúvidas da população atingida pela enchente e que tem direito a acessar o Auxílio Reconstrução. O atendimento ocorre das 10h às 15h.

Segundo o executivo municipal, mais de 40% da cidade foi atingida, em que mais de 180 mil pessoas foram impactadas. A população da cidade é de 217.410 pessoas.

Na cidade vizinha, Novo Hamburgo, a dona de casa Rose Maria Santos de Oliveira conta que volta para a residência foi bastante difícil. “As pessoas que não tinham mais nada pegavam as coisas do lixo. Era noite inteira as pessoas catando as coisas melhores pra levar, foi horrível.”

Moradora do bairro Santo Afonso, a dona de casa é uma das 32 mil pessoas atingidas pela enchente na cidade de 227.732 habitantes.

Ela mora há 45 anos no local e é a primeira vez que água chegou até a casa. “Eu e meu esposo não queríamos sair. A gente tem um filho que mora na rua Chavante, bairro Liberdade ele veio com água até o pescoço para nos tirar”.

O casal, que tem cinco filhos, foi para para o bairro Liberdade, onde dividiu o local com 30 pessoas e 14 cães. “Eram os parentes da minha nora, mãe, pai. Outro filho meu permanece lá porque ainda não conseguiu voltar para casa ainda. Outros dois filhos perderam tudo, nós também”, conta.

Há pouco mais de duas semanas, o casou voltou para casa. “Começamos a limpar, foi muito triste, mas não adianta tu chorar, fazer o quê? Tem que começar tudo de novo”. Em comparação comparação com outras localidades, o acúmulo de lixo não era tão volumoso. Rose conta que vizinhos alugaram tele-entulhos para os descartes.

Segundo a prefeitura, mais de 11 mil toneladas já foram recolhidas. De acordo com o executivo municipal no último sábado, dia 1º, as ruas do bairro Santo Afonso receberam um mutirão de limpeza, com maquinários das prefeituras de Dois Irmãos, Estância Velha, Ivoti, Lindolfo Collor, Morro Reuter, Presidente Lucena e São José do Hortênsio, além de Novo Hamburgo.

Rose conta que fez o cadastro e aguarda a liberação do auxílio. “A gente conseguiu bastante ajuda, tem a igreja aqui que fornece água, rancho. Todo mundo se ajudou. Ainda bem”.

“Espero que a água baixe logo, e eu possa retornar pra casa”

O retrato na parede mostra o nível que a água alcançou no apartamento térreo de Thais Rubim Machado, moradora do bairro Sarandi, o mais atingido de Porto Alegre.

“Eu acordei no sábado, dia 4 de maio, às 8hs da manhã, com um alerta sobre a sirene de um carro avisando os moradores que o dique do Sarandi havia rompido, e eu meu namorado conseguimos pegar algumas coisas e colocar no carro e sair a tempo que a água chegasse. Estou hospedada na cara da família do meu namorado, no bairro Cristo redentor há um mês.”

Moradora do bairro há 34 anos, ela conta que em algumas ruas as águas já baixaram, contudo, em outras ainda está bem alta. Thais ainda não conseguiu voltar para casa.

“Estive lá no sábado, dia 1º. Fui com o caminhão do Exército, pois a água na minha rua se encontrava pela cintura, perdi bastante coisa, só salvei a geladeira, que consegui colocar no bloco no quarto andar. E o sofá meu namorado conseguiu colocar em cima do carro. Roupas, peguei algumas no dia e outras consegui pegar no sábado agora, que tinha deixado na parte mais alta do roupeiro e não chegou a molhar. Fiquei muito triste ao ver a destruição que ficou meu apartamento. Minhas coisas que tanto lutei para comprar, a impressão que tive quando entrei é que havia passado um furacão.”

Ao ser indagada sobre o que poderia ter contribuído para a situação, ela acredita que foi um pouco de tudo. “A quantidade de chuva, as comportas do muro da Mauá que romperam na parte de baixo, o dique que foi rompido no bairro Sarandi, a falta de bombas na cidade para drenagem da água desde o início que começou a enchente”, enumera.

Na medida do possível, Thais pontua que está bem, triste pelo o que aconteceu, e também feliz pela rede de solidariedade que se formou. “Eu espero que essa água baixe logo, para que eu possa retornar para minha casa. Que o governo tenha um plano para mudar todo sistema de proteção contra enchentes em todo Rio Grande do Sul”. Thais já fez o cadastro do governo. O processo está em análise.

Também na capital, no centro de Porto Alegre, a Ocupação Periferia no Centro começou o processo de limpeza.

“Hora de tirar o lodo da ocupação Periferia no Centro. Foram mais de 3 semanas com o prédio ilhado, resistindo à catástrofe e à gestão municipal, nessa cidade em que tudo é posto à venda aos ricos. Somos a força da comunidade, com esperança radical em construir uma vida que pode ser diferente, onde nossa gente e toda a gente não seja tratado que nem coisa”, escreveu o movimento em sua rede social.

Brasil de Fato RS lançou nesta semana o documentário O rio só quer passar: tragédia climática no Rio Grande do Sul. O vídeo está disponível no canal do BdF no YouTube.

O filme retrata o impacto social das cheias extremas no Rio Grande do Sul a partir dos depoimentos de moradores de áreas urbanas, assentados da reforma agrária, indígenas e quilombolas.

Confira a reportagem completa, com fotos, aqui.

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