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Finados: Podia ser minha mãe, que loucura

Confira o artigo do militante do movimento negro e colunista da carta capital, Negro Belchior, que ele fala sobre a morte prematura e premeditada nas populações mais pobres, principalmente negras

Douglas Belchior (Militante do Movimento Negro e colunista da Carta Capital)

“2 de Novembro era Finados | Eu parei em frente ao São Luiz do outro lado | E durante uma meia hora olhei um por um | E o que todas as Senhoras tinham em comum | A roupa humilde, a pele escura | O rosto abatido pela vida dura | Colocando flores sobre a sepultura | Podia ser a minha mãe, que loucura”

Racionais MC’s

Por Douglas Bechior

Pobreza e religião caminham juntas desde sempre, ao menos para os fiéis, para os povos que compõem as igrejas. E a vida, e a morte, e a vida após a morte, encontram novos significados, quase sempre em busca do conforto diante da vida real.

Poucos poetas retrataram tão bem a dura realidade das periferias brasileiras, como fizeram Racionais Mc’s. Entre a denúncia da realidade e a valorização da identidade negra e periférica, a busca incessante pela “fórmula mágica da paz”. E, em muitos versos, a pintura do quadro da dor e do sofrimento daquelas que ficam e que choram nos velórios diante do desespero da perda, quase sempre famílias negras, quase sempre mães pretas, pobres, mães de maio, de ontem e de hoje.

A morte é, como sabemos, a grande certeza da vida. E poderia sim, ser vista, entendida e significada de uma forma diferente como a temos. Uma morte decorrente de uma vida bem vivida, de uma vida de prazeres, de uma vida repleta de direitos e humanidade que chegasse ao seu fim como uma passagem natural, como o fim de um ciclo, com a menor dor possível, com dignidade e cuidados. A morte poderia ser, em regra, uma experiência que deixasse na consciência dos que ficam, o acalanto do “Viveu uma vida plena e foi feliz” ou do “fiz tudo que podia ter feito”.

O dia de Finados poderia ser momento de saudades apenas. Dia de uma tristeza dorida, mas suave, branda…

Mas não!

Não é essa a relação que temos com a morte. A vida real do povo mais pobre, da população que ocupa as periferias e do povo negro jamais ofereceu condições para a oferta das chamadas mortes naturais, da “morte morrida”. A escravidão, as ditaduras e as falsas experiências de democracia, nos deixou marcas profundas em que a morte sempre esteve relacionada ao castigo, à dor, ao sofrimento, à tortura, à chacina e muitas vezes, a morte sem corpo, sem velório e sem o direito sagrado da despedida.

“Para os pobres e principalmente para a população negra, a dor é propositada, prevista. E a condição é precarizada, injusta. E a vida interrompida, encurtada. E a morte prematura, premeditada, naturalizada.”

No Brasil, segundo o mapa da violência 2014, a taxa de homicídios é a maior desde 1980. São números de 50 a 100 vezes maiores que a de países como o Japão. Em média, 100 em cada 100 mil jovens entre 19 e 26 anos morrem violentamente a cada ano.

A vitimização dos negros é bem maior que a de brancos. Morreram proporcionalmente 146,5% mais negros do que brancos no Brasil, em 2012. Considerando a década entre 2002 e 2012, a vitimização negra, isso é, a comparação da taxa de morte desse segmento com a da população branca, quase triplicou.

Os homicídios são uma das principais causas de tantas mortes. E nessa categoria, destaca-se o papel do Estado e de suas polícias que, ao contrário de proteger a vida, promovem a morte.

Sob comando de governos do PSDB, a polícia de São Paulo matou mais de 10 mil pessoas nos últimos 19 anos. Com Geraldo Alckmin no comando, a cada ano a PM mata mais. Entre janeiro e novembro de 2014, 816 pessoas foram mortas por policiais, índice maior do que em 2006 e 2012, anos de conflito aberto contra o PCC. Em 2015 um novo recorde pode ser batido. Isso sem considerar as vítimas de chacinas que já somam 75 só na região metropolitana de SP. Ainda assim, há aqueles que, como o Presidente do Tribunal de Justiça, afirmam que Polícia Militar de SP “é a melhor do mundo“.

No Rio de Janeiro, as mortes decorrentes de ação policial aumentaram em 18%. Nos últimos 10 anos, mais de 50 crianças foram mortas por policiais nesse Estado, o que equivale 60% de todos os casos no País. No Brasil, 82 crianças e adolescentes de até 14 anos foram mortas por policiais; destas, 73% eram negras.

Essa realidade não se limita a São Paulo e Rio de Janeiro. Espirito Santo, Pará, Maranhão, Bahia e todos os estados do nordeste sofrem com altos índices de violência e mortes promovidas por aqueles que deveriam garantir a segurança e a vida.

Neste 2 de novembro, feriado de finados, respeitemos a dor de todas as cores, mas lembremos que há, neste grande cemitério chamado Brasil, a permanência da desigualdade também na distribuição das covas ou, nas palavras de João Cabral de Melo Neto, da cova medida, a parte que nos cabe nesse latifúndio.

E nossa angústia cantada…

Há uma morte branca que tem como causa as doenças, as quais, embora de diferentes tipos, não são mais que doenças, essas coisas que se opõem à saúde até um dia sobrepujá-la num fim inexorável: a morte que encerra a vida. A morte branca é uma “morte morrida”. Há uma morte negra que não tem causa em doenças; decorre de infortúnio. É uma morte insensata, que bule com as coisas da vida, como a gravidez e o parto. É uma morte insana, que aliena a existência em transtornos mentais. É uma morte de vítima, em agressões de doenças infecciosas ou de violência de causas externas. É uma morte que não é morte, é mal definida. A morte negra não é um fim de vida, é uma vida desfeita, é uma Átropos ensandecida que corta o fio da vida sem que Cloto o teça ou que Láquesis o meça. A morte negra é uma morte desgraçada. (BATISTA; ESCUDER; PEREIRA, 2004, p.635)

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