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Dia da Internacional Mulher Negra

“Eu vejo que a empresa contrata bastantes negros para o chão de fábrica, mas lá onde ficam os grandões, não se vê negro”, afirma metalúrgica

Nazaré Inocência, trabalhadora da Flextronics, conta sua história e seus sonhos; mulheres negras são praticamente um terço da população brasileira

Gabriela Guedes/Imprensa SMetal
Lucas Delgado

Nazaré Inocência é trabalhadora na Flextronics e tem 61 anos.

A metalúrgica e dirigente sindical Nazaré Inocência trabalha na Flextronics desde 2010. E imbricado à sua classe, tem duas características que também atravessam sua vida: é mulher e negra. Confira a entrevista com a trabalhadora, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, celebrado neste dia 25 de julho, dia em que Nazaré completa 61 anos de idade.

Nazaré conta que, assim como muitas, teve infância e adolescência difíceis em Sorocaba, marcada pela pobreza e trabalho doméstico, entre os anos 1960 e 70. Ela ajudou a cuidar dos seus irmãos desde nova para que seus pais pudessem trabalhar.

Ela relata que desde a escola precisou aprender a se defender contra o racismo. “Uma coleguinha de classe me xingava muito de ‘negrinha do cabelo duro’, chegou a me agredir também. Aí eu não aguentei e briguei com ela”, disse.

Seus primeiros trabalhos formais foram na indústria têxtil, interrompidos por um ex-marido que a impedia. Mais tarde, voltou a trabalhar, agora como empregada doméstica, chegando à metalurgia há 14 anos atrás.

Agora, após criar sete filhos sozinha e ajudar a criar seus 13 netos, Nazaré observa a discriminação também de forma sutil. “A gente percebe que tem algumas pessoas que olham meio diferente para a gente”, observa. Ela fala também sobre a ausência de negros em cargos mais altos das empresas.

Mas, além de críticas à realidade, o Dia Internacional da Mulher Negra também pode servir como um grito de indignação, esperança e organização. Nazaré sonha com mulheres negras ocupando cargos de vereadoras, prefeitas e presidentas e diz que vê no movimento sindical um espaço de acolhimento e força para lutar. 

“A luta alavanca mais se eu, mulher negra, estiver lá Acho que a gente tem mais oportunidade de levar pautas e debater com todo mundo”, relata. Hoje, Nazaré coordena o Comitê Sindical de Empresa (CSE) da Flex.

Mulheres negras são a maioria

As mulheres negras representam cerca de 60 milhões de pessoas no Brasil, o que corresponde a 28,5% – praticamente um terço, da população brasileira. 

Aproximadamente 31,8% das mulheres negras não estão empregadas devido à necessidade de cuidar de filhos ou outros parentes, comparado a 27% das mulheres brancas. Além disso, apenas 10,7% do total da renda recebida pela oferta de trabalho no país é destinado às mulheres negras.

A desigualdade também se reflete na educação: 35% dos adultos negros, homens ou mulheres, não têm nenhum nível de escolaridade ou não completaram o ensino fundamental, enquanto entre os brancos esse índice é de cerca de 25%. Esses dados destacam as disparidades raciais e de gênero no acesso ao emprego e à educação.

As informações estão no relatório sobre desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), divulgado em maio, e indicam que muitos sofrimentos relatados por Nazaré, infelizmente, são a realidade de muitas.

“Eu sou descendente de africanos. O meu bisavô, pai do meu avô, foi caçado a laço na África. Tem uma parte da minha família que mora no Cafundó”, conta Nazaré. A origem dessa desigualdade vemos até hoje: a escravidão que nunca foi devidamente tratada no Brasil. A Comunidade Quilombola do Cafundó existe oficialmente desde, pelo menos, 1888 e é um exemplo de resistência de pessoas escravizadas na região de Sorocaba.

Confira a entrevista completa

1) Por favor, se apresente contando a história da sua vida. Onde nasceu? Como foi a sua infância e adolescência? 

Meu nome é Nazaré Inocência, tenho 61 anos de idade, nasci em Votorantim, mas sempre morei em Sorocaba. A minha infância e adolescência foram muito sofridas, porque meus pais eram muito pobrezinhos, precisavam trabalhar e eu tinha que ficar em casa cuidando de cinco irmãos. Então, com os meus nove, dez anos, eu já trabalhava dentro de casa, cuidando dos meus irmãos. 

Eu sou descendente de africanos. O meu bisavô, pai do meu avô, foi caçado a laço na África. Tem uma parte da minha família que mora no Cafundó.

Quando fui para a escola eu sofri racismo. Uma coleguinha de classe me xingava muito de ‘negrinha do cabelo duro’, chegou a me agredir também. Aí eu não aguentei e briguei com ela, porque ela rasgou a minha mochila com o gilete. Naquela época, o diretor da escola batia na mão da gente com régua para educar.

2) Como você se tornou metalúrgica?

Então, eu cheguei na indústria com 16 anos, né? Foi meu primeiro registro de carteira; trabalhei em uma empresa de tecidos. Depois, meu marido não me deixava trabalhar e eu parei. Voltei a trabalhar quando ele faleceu, e aí fui trabalhar de faxineira, né? E foi aí que surgiu a oportunidade de eu trabalhar na empresa que eu estou agora, que é Flextronics. Eu entrei lá em 2010 por indicação da minha irmã. Eu vejo que a empresa contrata bastantes negros para o chão de fábrica, mas lá onde ficam os grandões, não se vê negro.

3) Você pode contar um pouco sobre a questão da discriminação? Especialmente no ambiente de trabalho.

A gente percebe que tem algumas pessoas que olham meio diferente para a gente, só que a gente não pode saber se ela está discriminando, né? A gente vê que olha diferente, mas não tenho como provar isso.

4) Para você, o que precisa ser feito no Brasil para que as mulheres negras sejam reconhecidas e valorizadas?

Onde tem as mulheres negras, criar um tipo um convênio para que elas possam aprender artesanato, culinária, cursos para entrar na faculdade e que seja assim tudo gratuito. Que se dê mais valorização nas partes mais pobres do Brasil, porque é lá onde estão os negros, as mulheres negras, com poucas oportunidades.

5) O que você deseja e sonha para as mulheres negras? 

Meu sonho para as mulheres negras é que elas tenham mais oportunidades de chegar no Senado, que tenham mais mulheres negras como deputadas, prefeitas, vereadoras, ministras e até um dia que a gente possa ter uma mulher negra presidente do Brasil. Esse seria o meu sonho.

6) Como o movimento sindical pode ajudar a alçar essa realidade?

Que o movimento sindical dê mais oportunidade às mulheres negras e pode fazer isso criando políticas que invistam no conhecimento e nos valorize. A luta alavanca mais se eu, mulher negra, estiver lá. Acho que a gente tem mais oportunidade de levar pautas e debater com todo mundo. Então, eu me sinto representada e acolhida, porque eu sei que no movimento sindical temos mais força para falar. A gente já tem força  na nossa vida, no dia a dia, só que a força que a gente tem não é como a que temos enquanto trabalhadores unidos. Ali, sempre tem alguém que vai te ajudar e te orientar.

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