“Estarrecedor”. “Execrável”. “Deprimente”. Esses foram alguns dos termos usados por ativistas de direitos humanos ao comentarem a homenagem feita pelo deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) ao coronel Brilhante Ustra, o primeiro militar reconhecido pela Justiça brasileira como torturador.
A menção foi feita durante a votação no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, ocorrida na noite de domingo na Câmara dos Deputados.
“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim” – foi o trecho final do discurso de Bolsonaro, em meio a vaias e aplausos.
Durante o regime militar, entre 1970 e 1974, Ustra foi o chefe do DOI-Codi do Exército de São Paulo, órgão de repressão política do governo militar. Ali, sob o comando do coronel, ao menos 50 pessoas foram assassinadas ou desapareceram e outras 500 foram torturadas, segundo a Comissão Nacional da Verdade.
“Ver essa homenagem ao Ustra deveria chocar e entristecer a todos que prezam a democracia, independentemente da posição política”, afirmou à BBC Brasil Átila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil.
“Dessa vez Bolsonaro foi além nos seus elogios à ditadura. Ele, um personagem nefasto, escolheu um momento de grande dramaticidade da vida democrática brasileira para fazer uma homenagem ao símbolo mais acabado do horror da nossa ditadura. Foi chocante.”
‘Apologia à tortura’
Na tarde desta terça-feira, a OAB/RJ anunciou que irá recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para pedir a cassação do mandato de Bolsonaro.
“Houve apologia a uma figura que cometeu tortura e também desrespeito à imagem da própria presidente”, disse Felipe Santa Cruz, presidente da OAB/RJ, em nota. “A apologia à tortura, ao fascismo e a tudo que é antidemocrático e intolerável. Além da falta de ética, que deve ser apreciada pelo Conselho de Ética da Câmara, é preciso que o STF julgue também o crime de ódio.”
Além disso, a entidade informou que pode recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos para pedir que o deputado deixe o cargo e que um grupo de juristas está elaborando um estudo com argumentos e processos para pedir a cassação.
Para Jessica Morris, diretora-executiva da ONG Conectas, também é preciso analisar o artigo 287 do Código Penal. “Ele diz que apologia a um autor de um crime é um crime. Imagino que ele vá alegar imunidade parlamentar, como já fez outras vezes”, disse à BBC Brasil.
“Agora, é necessário analisar se existe vínculo do que ele disse com a função parlamentar. É isso que o STF terá de responder. Porque a imunidade não pode ser uma carta branca para parlamentares não respeitarem direitos.”
O professor de direito Octavio Luiz Motta Ferraz, da universidade britânica King’s College Law School, lembra que a jurisprudência do STF diz que a inviolabilidade (imunidade parlamentar) não é absoluta e concorda com Jéssica que o artigo 287 poderia ser usado para indiciar o deputado.
“A discussão seria então sobre se a condenação de Ustra em 2008, mantida em 2012 pelo TJ-SP, pode configurá-lo (Bolsonaro) como autor de crime. A condenação foi civil, pois houve anistia aos crimes”, disse Ferraz, em referência à lei que anistiou os crimes políticos e conexos da época.
‘Execrável e lamentável’
Para Maria Laura Canineu, diretora no Brasil da organização Human Rights Watch, “viver numa democracia, sem censuras, é enfrentar manifestações lamentáveis como a do deputado Bolsonaro”.
“Ela (a declaração) é, no entanto, execrável e absolutamente violenta à memória de tantos que morreram pelo ideal dessa própria democracia que ele ataca”, completa Maria Laura, dizendo que o fato de que a fala do deputado representa a visão de algum eleitor no Brasil “é ainda mais lamentável”.
O Tortura Nunca Mais/RJ, um grupo que luta pela memória do período da ditadura, também rechaçou a homenagem de Bolsonaro.
A presidente da organização, Victória Lavínia Grabois Olímpio, disse à BBC Brasil que é “deprimente e estarrecedor ter de ver alguém exaltar a tortura e elogiar um torturador”, mas explicou por que não se espantou tanto.
“Isso acontece porque nenhum dos governos civis que sucederam os militares fez nada pelos brasileiros mortos, torturados e desaparecidos”, afirmou.
“De Sarney a Collor, Itamar, FHC, que teve papel predominante contra a ditadura, Lula, um grande sindicalista responsável pelas greves que iniciaram a ruptura do regime militar, e Dilma, uma militante barbaramente torturada: nenhum deles tomou ações efetivas contra as mortes, torturas e desaparecimentos. Militares continuam ocupando cargos no governo e nenhum dos que cometeram crime de lesa-humanidade foi responsabilizado.”
Leniência
A falta de prestação de contas com a época da ditadura também é apontada por Victória, do Tortura Nunca Mais, como um elemento que criou um clima onde Bolsonaro pode elogiar um torturador: “O problema é que esse passado, em geral, já foi esquecido. Até nos livros das escolas ele é pouco estudado. Só não cai no esquecimento completo por grupos de familiares das vítimas, que não deixam essa memória se apagar”.
Átila, da Anistia, concorda com a ativista, ao dizer que somente em um país “que não foi capaz de levar à frente e julgar os crimes da ditadura, é que se aceita conviver com tamanha naturalidade com elogios como esses”.
E diretor da Anistia afirma ainda que Bolsonaro só fez a citação a Ustra pela conivência ou leniência que enfrenta de seus pares.
“Isso acontece pela maneira como a classe política, sobretudo o Congresso, tem tratado como galhofa ou mero exagero do politicamente correto os atos repetidos de Bolsonaro que se aproximam da incitação à violência e do crime, como aconteceu no caso da deputada Maria do Rosário”, diz.
Em 2014, Bolsonaro disse que não estupraria Maria do Rosário “porque ela não merece”, repetindo uma ofensa que já havia proferido antes. “O Congresso se transformou em um lugar de conforto para que ele repita seu discurso de ódio e antidemocrático”, afirma Átila.
Contraposto a argumentos que defendem que Bolsonaro estava apenas compartilhando suas opiniões, Átila opina que não se deve relativizar a liberdade de expressão.
“A princípio, as pessoas podem falar e defender as ideias como quiserem. Mas elas também devem responder por isso. Quando as ideias ultrapassam os limites da legalidade, elas se transformam em incitação à violência.”
Na manhã desta terça-feira, Dilma – que foi torturada inclusive no DOI-Codi – comentou a homenagem de Bolsonaro. “Eu fui presa nos anos 1970. De fato, eu conheci bem esse senhor a que ele se referiu. Foi um dos maiores torturadores do Brasil, contra ele recai não só a acusação de tortura, mas também de mortes”, disse.
“É terrível ver alguém votando em homenagem ao maior torturador que o Brasil conheceu.”