Uma caminhada de três quilômetros entre a sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, no bairro da Liberdade, e o local onde funcionou o DOI-Codi, na Vila Mariana, na manhã de hoje (17), abriu o primeiro dos 40 dias em que será lembrada a morte do operário Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976. A partir de amanhã, o jornalista e maratonista gaúcho Rodolfo Lucena vai correr e percorrer vários locais da capital paulista que fazem referência à trajetória do metalúrgico, cujo assassinato resultou na derrubada do comando do 2º Exército e em nova crise dentro do governo ditatorial.
Alagoano de Quebrangulo, mesma cidade do escritor Graciliano Ramos, Manoel Fiel veio para São Paulo aos 17 anos, em 1944. Foi cobrador de ônibus, padeiro e, por fim, metalúrgico. Trabalhou durante 19 anos da Metal Arte, no bairro da Mooca, considerado pelos chefes um operário exemplar. Os colegas diziam que ele vivia para o trabalho e para a família. Foi preso em 16 de fevereiro, na própria fábrica, e no dia seguinte estava morto, em consequência de torturas. Deixou mulher, Thereza, que mora hoje no interior de São Paulo, e duas filhas, Aparecida e Márcia.
Como havia acontecido na morte do jornalista Vladimir Herzog, apenas três meses antes, no mesmo DOI-Codi, surgiu a versão oficial de que o operário havia se suicidado, usando as próprias meias para se estrangular. Manoel Fiel foi morto sob tortura. Basicamente, seu “crime” foi receber exemplares do jornal Voz Operária, do Partido Comunista. Levado por dois agentes, ele deixou a fábrica com tranquilidade – e também foi assim ao passar em casa, antes de ser levado, para interrogatório, para um dos mais famosos centros de tortura do período da ditadura.
Passou um dia, e dona Thereza, aflita, não recebeu notícias do marido. Até que um carro parou na porta de sua casa, na Chácara Belenzinho (Sapopemba, zona leste), e um homem atirou um saco de lixo. Eram as roupas e documentos de Manoel Fiel Filho. E um aviso seco: ele estava morto.
Repórter de O Estado de S. Paulo, Ricardo Kotscho apurou o caso e teve matéria publicada na edição de 21 de janeiro de 1976 mas, diante da relutância do jornal, teve não de assinar o texto, mas de assumir responsabilidade pelo conteúdo. Um risco e tanto naqueles tempos. O título era: “Manoel, da fábrica da Mooca para a morte”. Em trecho, ele narra: “No saco azul de 20 litros com o emblema da ‘Lixeira Ideal’ estavam a calça e a camisa de brim, o cinto e um par de sapatos. No envelope, com o timbre do Exército, os documentos do Manoel”. A mulher do operário ainda gritou para o homem do carro: “Eu sabia que vocês iam matar ele”.
Linha-dura
“Foi a gota d´água. Isso despertou os movimentos sociais”, afirma o diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política, Maurice Politi, que participou do ato desta manhã. Fora do país em 1976 (havia deixado o Brasil um ano antes e só retornou depois da anistia), ele lembra que, a partir desse episódio, se articularam movimentos como os das mães de presos políticos e pela anistia.
E a morte de Fiel Filho também teve consequências internas no governo: o presidente Ernesto Geisel determinou o afastamento do comandante do 2º Exército, general Ednardo D´Ávila Mello, representante da chamada linha-dura militar. “Ele (Fiel) apenas distribuía jornais”, diz Politi.
Naquela época, Rodolfo Lucena era estudante em Porto Alegre e prestava vestibular para Jornalismo. A notícia da morte do operário “rompeu o cerco da censura” e chocou os estudantes. Ainda se estava sob o impacto do assassinato de Herzog, em condições semelhantes. Para o jornalista, o caso de Manoel Filho “ajudou a abrir o caminho para os trabalhadores e para toda a sociedade brasileira”.
O operário era filiado ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. O diretor responsável pelo Departamento de Memória Sindical da entidade, Francisco Campos, conta que o então presidente, Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, ficou “consternado” e mandou telegrama a Geisel, denunciando o episódio. Campos lembra que o embate interno no governo prosseguiu em 1977, quando o presidente demitiu o ministro do Exército, general Silvio Frota.
No Instituto Médico Legal, agentes da repressão tentavam impedir que a notícia se espalhasse. Queriam que o corpo fosse levado do IML diretamente para o cemitério. Depois, concordaram com um rápido velório, não mais que duas horas, também monitorado. Na manhã do domingo, dia 18, Manoel Fiel Filho foi enterrado no Cemitério da Quarta Parada, também na zona leste. Em seu texto, o detalhista Kotscho anota que o coveiro, Cícero Barbosa da Silva, também era alagoano.
Em suas corridas diárias, sempre a partir das 7h, Rodolfo Lucena passará por lugares como a casa onde Manoel e Thereza se conheceram, a casa onde moraram, o local onde funcionava a Metal Arte, a igreja onde o corpo foi velado e o cemitério. O encerramento será em 9 de abril, no Memorial da Resistência, na região central, onde funcionou o Dops.
O Ministério Público Federal pediu a responsabilização de sete agentes pela morte do metalúrgico. A Justiça não aceitou a denúncia.