Um grupo de 93 diplomatas e 25 oficiais e assistentes de chancelaria do Itamaraty divulgou, na quarta-feira, dia 31 de maio, uma carta pública criticando o “uso da força” para conter manifestações e pedindo que líderes políticos “abram mão de tentações autoritárias, conveniências e apegos pessoais ou partidários em prol do restabelecimento do pacto democrático no país”.
O texto foi escrito coletivamente por diplomatas distribuídos por representações brasileiras em diferentes partes do mundo – de Nova York a Moscou -, sem a participação da cúpula do Ministério das Relações Exteriores, chefiado desde março pelo senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), que participa nesta semana de reuniões em Washington (EUA).
“Repudiamos o uso da força para reprimir ou inibir manifestações. Cabe ao Estado garantir a segurança dos manifestantes, assim como a integridade do patrimônio público, levando em consideração a proporcionalidade no emprego de forças policiais e o respeito aos direitos e garantias constitucionais”, diz o texto.
Na carta pública, intitulada “Diplomacia e Democracia”, os autores se dizem preocupados com o “acirramento da crise social, política e institucional que assola o Brasil”, pedem diálogo para a “retomada de um novo ciclo de desenvolvimento, legitimado pelo voto popular” e afirmam que conquistas importantes para a sociedade e a relevância internacional do país “estão ameaçados”.
“Diante do agravamento da crise, consideramos fundamental que as forças políticas do país, organizadas em partidos ou não, exercitem o diálogo, que deve considerar concepções dissonantes e refletir a diversidade de interesses da população brasileira”, diz o texto (leia a íntegra no fim desta reportagem).
Segundo a BBC Brasil apurou em conversas com sete dos diplomatas que assinam o texto, o estopim para a carta foi uma nota oficial divulgada pelo Itamaraty na sexta-feira passada, em resposta a críticas feitas por órgãos internacionais de direitos humanos sobre a violência policial no país.
No texto, endereçado a representantes das ONU e da OEA (Organização dos Estados Americanos), o Ministério das Relações Exteriores surpreendeu ao adotar uma linguagem dura ao se referir aos organismos internacionais.
“Tendencioso”, “desinformado”, “má-fé”, “cinismo” e “com fins políticos inconfessáveis” foram alguns dos termos usados pelo Brasil como resposta às críticas feitas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Em entrevista concedida à BBC Brasil e em notas divulgadas à imprensa, porta-vozes das duas entidades criticaram a violência policial em protestos contra o governo, em Brasília, em operações urbanas na região conhecida como cracolândia, em São Paulo, e em reintegrações de posse de terrenos ocupados por sem-terra, como a que gerou 10 mortes no interior do Pará.
Procurado pela reportagem para comentar a carta dos diplomatas, o Itamaraty não se posicionou até a publicação desta reportagem.
Legitimidade e riscos
Os diplomatas ouvidos pela BBC Brasil afirmam que a “postura defensiva e agressiva” das notas emitidas pelo Itamaraty pode “fechar portas” e prejudicar a imagem internacional do Brasil.
O país concorre neste momento, por exemplo, a uma das três vagas abertas para o período de 2018 a 2021 na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA.
“Outros países podem deixar de votar na representante brasileira se acharem que nosso compromisso com os direitos humanos está abalado”, avaliou uma diplomata.
“Ou nossa legitimidade pode ser colocada em questão simplesmente pelo fato de termos atacado a CIDH. Aí a gente perde credibilidade com outros países, que poderão nos enxergar na mesma categoria de países que historicamente violam direitos humanos.”
Todos os entrevistados afirmam que o objetivo da carta não é um gesto de insubordinação ou de confronto em relação ao ministério.
“Este texto pode representar um primeiro passo para que possa haver espaço para divergência e vozes dissonantes na diplomacia, porque isso é saudável”, argumentou um dos entrevistados.
“O lugar para o qual sempre foi reservado o silêncio decidiu se colocar”, disse outro, citando a rígida hierarquia dentro da diplomacia.
A carta foi assinada principalmente por diplomatas que acumulam entre 10 e 20 anos de carreira no Itamaraty, com diferentes origens e inclinações políticas.
Crise, violência, desenvolvimento e voto popular
Segundo os entrevistados, diante da diversidade política entre os signatários e de leis que regem a atividade diplomática, a carta “busca um tom conciliador, não levanta bandeiras, nem faz críticas diretas a políticos ou à política externa” do país.
Muitos dos signatários discordam, por exemplo, da postura de aproximação adotada pelos governos de Lula e Dilma Rousseff em relação à Venezuela – corroborando uma das principais posições da atual gestão do Itamaraty.
“O problema é que, com tanta agressividade, o Brasil ironicamente se comporta justamente como a Venezuela, que tanto critica”, avaliou dos autores da carta.
O texto pede “diálogo construtivo e responsável” como caminho para “a retomada de um novo ciclo de desenvolvimento, legitimado pelo voto popular e em consonância com os ideais de justiça socioambiental e de respeito aos direitos humanos”.
Os entrevistados afirmam que querem chamar atenção para o acirramento da crise política e para os riscos de uma eventual escalada de violência no país.
“Chegamos a um ponto de preocupação tal com a crise, o estado da democracia e das instituições brasileiras, que até diplomatas, que estamos tradicionalmente em uma carreira muito discreta, decidimos nos manifestar”, assinala um dos diplomatas.
“Como diplomatas, acompanhamos sempre a situação política de outros países e sabemos como é fácil uma crise escalar para a instabilidade e mesmo para uma situação de conflito”, acrescenta.
Para outro entrevistado, o mote da carta é defender o legado do próprio Itamaraty.
“Não dá para perder de vista a importância que a diplomacia brasileira teve na construção, ao longo de décadas, do arcabouço internacional de proteção e promoção dos direitos humanos. Não estamos rompendo com nada, estamos reagindo à destruição do nosso capital diplomático”, afirmou.
Represálias
O número de signatários, que chegou a 180 no início da semana, caiu por medo de represálias dentro do ministério, segundo os entrevistados.
“Há três níveis: gente claramente insatisfeita com a nota (do Itamaraty criticando ONU e o OEA) e disposta a se expor, tantos outros claramente insatisfeitos, que cogitaram assinar, mas acharam mais prudente não se expor, e outros também insatisfeitos com a nota, mas não com o todo”, explicou um deles.
A reportagem também conversou com um conselheiro de uma embaixada que recuou em assinar o texto, apesar de concordar com seu conteúdo.
“Muitos dos que concordam com o conteúdo temem ser removidos de seus postos, ou exoneração de chefias”, disse, ressaltando que o direito a liberdade de opinião é protegido pela Constituição.
“(Também temem) o fato de expor suas próprias chefias, pois o Itamaraty é muito hierarquizado e baseado em relações de confiança”, afirma o diplomata.
Leia a seguir o texto completo divulgado pelos diplomatas:
Nós, servidoras e servidores do Ministério das Relações Exteriores, decidimos nos manifestar publicamente em razão do acirramento da crise social, política e institucional que assola o Brasil. Preocupados com seus impactos sobre o futuro do país e reconhecendo a política como o meio adequado para o tratamento das grandes questões nacionais, fazemos um chamado pela reafirmação dos princípios democráticos e republicanos.
2. Ciosos de nossas responsabilidades e obrigações como integrantes de carreiras de Estado e como cidadãs e cidadãos, não podemos ignorar os prejuízos que a persistência da instabilidade política traz aos interesses nacionais de longo prazo. Nesse contexto, defendemos a retomada do diálogo e de consensos mínimos na sociedade brasileira, fundamentais para a superação do impasse.
3. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, a consolidação do estado democrático de direito permitiu significativas conquistas, com reflexos inequívocos na inserção internacional do Brasil. Atualmente, contudo, esses avanços estão ameaçados. Diante do agravamento da crise, consideramos fundamental que as forças políticas do país, organizadas em partidos ou não, exercitem o diálogo, que deve considerar concepções dissonantes e refletir a diversidade de interesses da população brasileira.
4. Para que esse diálogo possa florescer, todos os setores da sociedade devem ter assegurado seu direito à expressão. Nesse sentido, rejeitamos qualquer restrição ao livre exercício do direito de manifestação pacífica e democrática. Repudiamos o uso da força para reprimir ou inibir manifestações. Cabe ao Estado garantir a segurança dos manifestantes, assim como a integridade do patrimônio público, levando em consideração a proporcionalidade no emprego de forças policiais e o respeito aos direitos e garantias constitucionais.
5. Conclamamos a sociedade brasileira, em especial suas lideranças, a renovar o compromisso com o diálogo construtivo e responsável, apelando a todos para que abram mão de tentações autoritárias, conveniências e apegos pessoais ou partidários em prol do restabelecimento do pacto democrático no país. Somente assim será possível a retomada de um novo ciclo de desenvolvimento, legitimado pelo voto popular e em consonância com os ideais de justiça socioambiental e de respeito aos direitos humanos.