“Arábia”, de Affonso Uchôa e João Dumans, remete a uma discussão crucial sobre o que é o Brasil hoje, o que é ser trabalhador e, acima de tudo, faz refletir sobre que mundo é esse em que a gente vive e se está fazendo sentido o trabalho que a gente anda fazendo.
Desde o dia 5 de abril nas salas de cinema do Brasil, a obra de 95 minutos de duração, vem conquistando plateias mundo afora. No país, foi o grande vencedor do Festival de Brasília.
A convite do Ciclo de Formação do SMetal, Affonso participou do cine debate realizado, na segunda-feira, dia 23 e concedeu entrevista à imprensa SMetal pouco antes da exibição do filme.
Desde seu primeiro filme, o curta-metragem “Uma moça à tarde”, lançado há 10 anos, quando cursava jornalismo na UFMG, Affonso percebeu que o cinema podia ser uma arma de reversão de uma realidade cruelmente excludente e o quanto essa arte poderia ajudar a pensar melhor sobre a nossa própria realidade.
É esse sonho que alimentou a construção do “Arábia”, que conta a vida do trabalhador Cristiano, um cara que quer se sentir útil, mas não consegue criar vínculos e passa a se questionar sobre seu lugar no mundo.
De certa forma, o “Arábia” (2017) é resultado de um processo de questionamentos suscitados pela arte do fazer cinema nas trajetórias de Affonso e de João Dumans, também diretor do filme. Ambos, trabalharam na obra anterior, “Vizinhança do Tigre” (2014). Affonso como diretor e João como montador e roteirista.
“Eu moro na periferia de Contagem (MG), uma cidade, que por si só, já periférica, de origem proletária e onde tem os maiores polos industriais de Minas Gerais. Uma cidade que nasceu e até hoje se sustenta pelo trabalho”, conta Affonso.
Percepção de mundo
Na faculdade de jornalismo na universidade pública de Minas Gerais, ele era o estranho no ninho. Naquele ano de 2003, no qual o Brasil ainda reservava a universidade só para poucos, para privilegiados, Affonso era o que tinha mais contato com o mundo do trabalho.
Por isso, que quando terminou o curta “Uma mulher à tarde” se sentiu preocupado. “Eu não estava me reconhecendo tanto naquilo que eu tinha filmado. Eu não estava reconhecendo o meu bairro, o meu lugar, as pessoas que me cercavam, que em suma, eram pobres, proletárias, pessoas que ocupam a parte excluída da população”. “Era um filme que não tinha ponto de vista social, político, e ele me despertou para qual que era o meu lugar no mundo”.
Por causa disso, o cineasta de Contagem foi para seu segundo filme, “Vizinhança do Tigre”. “Filmei sem nenhum recurso, sem nenhum orçamento durante quatro anos. Lá no bairro Nacional, filmando a vida de cinco jovens do bairro, mostrando alguns deles ex-presidiários, outros lidando com problemas com drogas, outros já com 30 anos querendo abandonar tudo e casar e ficar mais tranquilo na vida”.
Cada um com seus desafios. Foi esse filme que levou Affonso, novamente, para perto do seu bairro, “da minha história, do lugar que eu morava e me trouxe para o universo dos excluídos e me mostrou o quanto o cinema podia ser uma arma de reversão dessa realidade, o quanto ele pode ajudar a gente a pensar melhor sobre a nossa própria realidade. E às vezes, nem que seja durante um tempinho, ou o tempo que a gente faz, ou o tempo que a gente assiste, a gente sonhar com um mundo diferente daquele que a gente vive todo dia”.
O sucesso e a arte no mercado
Lançado aos festivais “Arábia” conquistou melhor filme, ator, trilha, montagem e crítica na 50ª edição do Festival de Brasília, um dos mais prestigiados do país – e que foi fechado pela ditadura civil militar, instaurada em 64.
Mas também conquistou prêmio no Uruguai, no Equador, nos Estados Unidos, no Peru, no Chile, na Argentina, na Espanha. E está sendo exibido até na China.
“A gente não se ilude muito não porque sabemos que toda essa repercussão, até mesmo os elogios ao filme, ainda assim é muito restrito. Ainda assim, a gente tá falando para uma camada muito pequena da população brasileira. E a gente sabe que essa camada é privilegiada”, ressalta Affonso.
“Então, por isso, é muito gratificante passar o filme aqui no sindicato, fazer o filme chegar naturalmente a quem não chegaria, principalmente para quem o mercado não prevê que o filme chegue porque esse mercado faz restringir o acesso. Além do filme fazer parte dessa construção, dessa luta do sindicato. Isso é muito gratificante”.
O cinema como exclusão
Em São Paulo, “Arábia” está sendo exibido no Espaço Unibanco e no shopping Frei Caneca, que tem ingressos entre R$ 29 e R$ 36 (inteira).
Quando o “Vizinhança” acaba em 2014 Affonso e João Dumans passam a trabalhar no “Arábia” e gravam durante três anos: 2014, 2015, 2016. “A gente grava um pedaço do filme a cada ano, com um intervalo de tempo grande entre eles e termina em 2016. Já 2017 foi o ano que ele entrou para os festivais, dentro e fora do Brasil. Em 2018, outra etapa da vida do filme, que foi fazer chegar ao cinemas”.
Depois da exibição nas salas, o filme vai para a televisão, sertã transmitido no canal Brasil. “Também vai ter a internet, no Net Now e a gente vai colocar o filme no nosso site para ser acessado e a gente quer fazer com que o filme supere a fase de só produto e colocar ele à disposição e fazer muitas sessões de debates com os movimentos sociais”.
Os diretores Affonso e João tornaram-se amigos na sala do cinema público de Belo Horizonte, raridade num país em que o cinema pago é muito excludente. Um trabalhador que ganha o salário mínimo não consegue gastar R$ 30 apenas com um ingresso.
Por isso, a grande realização para os cineastas de “Arábia” é ver o filme sendo exibido e comentado nas comunidades.
Affonso explica um pouco sobre a crueldade do circuito do cinema, quando um filme é colocado na condição de mercadoria. “Ele é então, colocado à disposição para ser comercializado. E o que acontece é que a estrutura de mercado do cinema no Brasil é bastante injusta, bem concentradora. A gente tem um abismo muito grande das produções hollywoodianas ou com dinheiro da Globo Filmes, que conseguem muitos recursos e tem um investimento de publicidade gigantesco. Por isso, mesmo tem gente famosa, eles convencem as melhores salas a exibirem esses filmes”.
Fica claro que nesse circuito filmes menores, mais culturais, independentes, não vão chegar. “A gente nunca vai passar onde os blockbusters brasileiros e internacionais estão passando. Então, pra gente já sobra um circuito bem pequeno, que é o circuito que o pessoal chama de filme de arte”.
Mesmo dentro desse nicho da arte há disputa com outros filmes, sejam eles alemães, coreanos, japoneses ou poloneses. Affonso relata que todos têm que passar por ali, naquela sala reservada aos filmes “Cult”. E ainda, “pro filme ficar muito tempo ali e ter uma chance de atrair uma galera boa, ele tem que estourar. Só que é muito difícil que um filme estoure no contexto brasileiro”.
Além de ser difícil de colocar o filme na sala ainda tem o custo dos ingressos dessas salas. “Então, a gente começa a ver umas características perniciosas do capitalismo brasileiro porque quando o sujeito, dono da sala, fecha acordo com uma outra distribuidora, se ela tem alguns filmes famosos, a distribuidora faz o que? “você vai levar esse filme aqui, mas só se você levar mais quatro junto”. “O próprio dono da sala, pela imposição das distribuidoras grandes, até as multinacionais têm pouca margem de manobra, vai sobrando menos espaço pro filme brasileiro. Porque a corda sempre arrebenta pro lado mais fraco”.
Mas o cineasta ressalta também que os donos das salas não são santos nessa história. “Eles querem manter o acordo com as distribuidoras que mais interessam, com o pessoal que é mais poderoso. O pessoal, que pode ter um projeto de lei e que paga, quase aluga o cinema, pra poder ficar mais tempo em cartaz, para tentar equiparar um pouco a briga com os gringos. Tem esses subsídios, às vezes, indiretos, às vezes franco. Você tá lidando com um jogo muito pesado e de gente que atua muito no sentido de garantir seu espaço e quando o pessoal garante o espaço deles é o cinema brasileiro que perde o espaço”.
“Então, quando a gente chega nessa fase a gente sabe que quando o filme vira produto ele joga as regras do capital e não são as mais justas”.
O golpe e o real sentido do trabalho
É claro para Affonso, que o golpe deflagrado no Brasil em 2016 realça ainda mais a luta de classes no país, que foi fundado sob as bases do colonialismo e da escravidão. “O que é essencial ao Brasil, infelizmente, é que exista uma classe de cidadãos que são, deliberadamente, esmagados e praticamente, escravizados para que uma elite mantenha o poder”.
Para ele, durante os governos progressitas de Lula e Dilma esse processo foi sendo suavizado, “a gente foi aprendendo e se convencendo que a gente ia superar e caminhando, inevitavelmente para uma democracia real, em que as oportunidades seriam igualadas, ou pelo menos, menos desiguais”.
Mas quando se mexe na distância social das classes há golpe. “A elite dá um chute na cara do Brasil e diz não, não é assim, como vocês acharam que a gente ia dividir esses recursos com vocês? Não. Isso aqui é tudo nosso, sim. E pra ser tudo nosso a gente tem que fazer algumas coisas, primeiro lugar a gente tem que se apropriar do Estado, dissolver esse Estado e implantar, nem que seja a forceps, esse neoliberalismo total e irrestrito, precisa dizimar a esfera pública e a gente precisa fazer uma caça a todos esses traidores que se sujeitaram, ousaram um dia a dar um exemplo contrário ao nosso poder”.
Com esse processo do golpe, depois de dois anos completos, “o Brasil entrando num nível pesadíssimo de neoliberalismo, a gente vai vendo um país se contaminar dessa doença que é inerente, que vem junto no pacote neoliberal, que é a perda de identidade com o trabalho. Que é a perda de sentido”, destaca Affonso.
Para vir ao SMetal na segunda, Affonso chegou em São Paulo no domingo, onde ficou na casa de um tio. O motorista do sindicato, o Estopa, que trabalhou décadas como metalúrgico, foi buscá-lo.
Durante a conversa no trajeto Estopa contou o que fazia a Affonso. “É muito bom conversar com o pessoal que é metalúrgico porque é como se voltasse um sentido real do trabalho, conversando com o Estopa e ele falando como é que faz uma coroa e um pião de carro e dizendo como que tem que fazer os dentes corretos e como pegava aquela chapa de aço e fazia os dentes para poder encaixar e via isso se formando e ele fala: “isso é bonito”. O trabalhador pode ver beleza no seu trabalho, se reconhecer naquilo. E quando o trabalho serve para despertar esse sentimento, absolutamente, humano que é a beleza, esse trabalho faz um pouco mais de sentido”.
Por outro lado, Affonso lembra que há o outro tipo de trabalho, aquele que é só para manter o sujeito vivo e pra eliminar toda e qualquer consciência de trabalhador. “Esse é um trabalho que deve ser combatido. E o neoliberalismo quer esse trabalho. Trabalho feito sem consciência, sem reflexão, no modo quase automático, impessoal e que todos nós sejamos substituídos por robôs”.
Assista “Arábia”, que nesse tempo de exceção, é um oásis para a reflexão e que pode contribuir como mística e motivação para a luta por uma transformação urgente, por um mundo mais digno, com mais sentido, por um trabalho no qual o trabalhador se identifique.