Nesse momento cinza de nossa história política, artística e social, com forte ataque a representação popular, do trabalhado e à arte de rua, é pertinente perguntar a quem pertence à cidade, o patrimônio e o espaço público. Pertence aos próprios trabalhadores que os construíram, com o seu justo direito de se verem representados, ou aos interesses do capital ou do poder público, que inúmeras vezes destina essas áreas dando as costas aos cidadãos e ao interesse social?
Para além dos espaços do trabalho, existe uma outra vida comunal, partilhada na realidade do bairro, da periferia, do centro ou dos caminhos que levam aos diferentes pontos de uma cidade que ao longo do tempo se tenta reconhecer “por minha cidade”. Espaços coletivos que têm o poder de congregar diferentes classes trabalhadoras irmanadas no mesmo desafio de criar os seus filhos, de andar com segurança, de ir ao trabalho com conforto e com o justo direito ao lazer. No entanto, o planejamento das cidades parece, cada vez mais, caminhar na contramão dessa missão edificante e acolhedora e que coloque o trabalhador como protagonista da própria cidade que constrói. Os exemplos são inúmeros, recorrentes e vão desde o ataque da nova administração paulistana a arte do grafite e as representações da periferia a exploração imobiliária que empurra os mais pobres para áreas cada vez mais distantes dos equipamentos da cidade ou a escolha e a valorização dos patrimônios culturais que enalteçam exclusivamente os símbolos do poder constituído.
Assim, para dar conta dessa realidade que vai além do “chão de fábrica”, quais são as alternativas de luta para fazer valer os desejos e a representação do trabalhador na cidade? Quais são os exemplos do que já se tentou e quais foram os resultados alcançados para fazer frente a essas forças que dia após dia edificam a cidade “do pensamento único” do lucro e do capital?
Há cerca de 20 anos, o Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região decidiu por uma ação cultural mais presente na vida dos cidadãos, com a inauguração de um Espaço de Experimentação Teatral, sob a direção de Carlos Roberto Mantovani – um operário com veia artística e grande prestígio dentro da classe artística sorocabana. Esse pioneiro passo fez parte de uma série de outras iniciativas empreendidas no período e em consonância a ideologia do Sindicato Cidadão – que prega uma ação de apoio ao trabalhador dentro e fora da fábrica. Conhecido popularmente a época como Espaço Cultural do Metalúrgicos – que manteve suas atividades por dez anos – toda uma geração de jovens foi formada e, de alguma forma, seguiram as ideias questionadoras e deram sequencia a ações artísticas e sociais propostas por seus dirigentes.
Como exemplo, após a morte prematura do Mantovani em 2002, os antigos integrantes do Espaço Cultural dos Metalúrgicos formaram uma nova companhia, homenageando o falecido teatrólogo, com o nome de Grupo Manto de Teatro. Já no primeiro trabalho, esse nascente coletivo artístico reformou o Teatro de Arena, rebatizado de Teatro Carlos Roberto Mantovani. Com a montagem de Romeu Julieta a população pôde novamente fruir num bem que até então encontrava-se abandonado.
Na segunda montagem, com a temática circense, o Grupo Manto revitalizou e empreendeu reformas estruturais nos fundos da Biblioteca Municipal Infantil. Essa ação cultural unida à ação social proporcionou não apenas a revalorização do circo-teatro – uma importante forma de lazer do trabalhador do século XX – como também dotou um bem público de uma infraestrutura que pudesse ser utilizada após a permanência do projeto do grupo. De fato, até hoje os equipamentos lá instalados são utilizados para as mais diversas manifestações artísticas e culturais.
Desde 2012, o Grupo Manto mantém uma residência artística nos Barracões da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, um local histórico para a industrialização de Sorocaba e reconhecido patrimônio cultural do Estado de São Paulo. Novamente um espaço abandonado e no qual a população não tinha acesso, recebeu adaptações para transformar parte do complexo num efetivo espaço cultural, inclusive com a montagem de um antigo vagão de trem de passageiros em biblioteca popular e sala de oficinas.
Ao mesmo tempo, o Grupo Trupé de Teatro, com integrantes vindo do antigo Espaço Cultural do Metalúrgicos ou de oficinas artísticas do Grupo Manto, fomentam uma importante ação de revitalização do centro da cidade de Sorocaba com suas oficinas e montagens de teatro. Todas essas atividades, tanto do Manto quanto da Trupé, mostram uma preocupação e revalorização da cidade e dos espaços públicos e que vão além da preocupação estritamente com o teatro, unindo à arte as questões sociais. Seja uma ocupação artística num local eminentemente ligado aos trabalhadores e seus símbolos, como os Barracões da antiga Sorocabana ou um olhar mais atencioso numa região decadente e que tem se transformado em mero local de passagem.
Seja como for, o que importa é medir como foi acertada a ação do Sindicato na criação do Espaço Cultural dos Metalúrgicos na década de 90 e como ela deu frutos. Construiu movimentos orgânicos e que ajudam atualmente a fazer frente a luta pelo direito à cidade e pela construção de uma vida urbana mais plural, democrática e na qual os trabalhadores possam se reconhecer e chamar de “minha cidade”.
Luciano Leite é produtor cultural e integrante do Grupo Mantô