A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), subordinada ao Ministério da Saúde, não presta mais informações a respeito de agrotóxicos, inclusive sobre aqueles registrados antes de 2016. A informação é da assessoria de imprensa da agência. Indagada na tarde da quarta-feira (1º) sobre as substâncias registradas ano passado – um recorde, segundo nota do Ministério da Agricultura (Mapa) –, limitou-se a informar que os questionamentos devem ser encaminhados diretamente à Agricultura.
No último dia 10, o Mapa divulgou que foram registrados 277 novos agroquímicos, um recorde histórico segundo o próprio ministério. Do total, 161 são produtos técnicos equivalentes (PTEs) – os chamados genéricos –, o que corresponde a alta de 374% em comparação a 2015, quando foram registrados 43 PTEs, além de 139 novos produtos. A média histórica anual é de 140 registros.
No anúncio do recorde, o coordenador geral de agroquímicos e afins do Mapa, Júlio Sergio de Britto, observou “grande evolução na qualidade e no número de produtos ofertados, graças ao esforço dos técnicos dos ministérios da Agricultura, da Saúde (Anvisa) e do Meio Ambiente (Ibama)”.
Até a conclusão desta reportagem, a assessoria de imprensa do ministério que abrange ainda a Pecuária e o Abastecimento, cujo titular é o ruralista Blairo Maggi, o “rei da soja”, não havia respondido à solicitação de informações.
Ação coordenada
Para especialistas da área, a mudança no controle das informações faz parte de uma ação coordenada por representantes do agronegócio que trabalham para acelerar a tramitação e aprovação de projetos de lei que compõem o chamado pacote do veneno. São projetos que, entre outras coisas, vão facilitar a aprovação, o registro, a comercialização, a utilização, o armazenamento e o transporte de agrotóxicos, aumentando a presença dessas substâncias nas lavouras brasileiras.
“O controle de informações no Mapa ocorre paralelamente a outras medidas em curso, sugerindo que o ‘pacote do veneno’ está sendo implementado mesmo antes de ter sido aprovado no Congresso e sancionado por Temer”, diz o coordenador da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida – Agrotóxico Mata, Alan Tygel.
O “pacote” inclui o Projeto de Lei (PL) 3.200/2015, do deputado federal Luis Antonio Franciscatto Covatti (PP-RS), que praticamente revoga a atual lei de agrotóxicos. Para ambientalistas, promotores federais, movimentos sociais e defesa do consumidor, a proposta é um retrocesso. Veta o termo “agrotóxico”, substituindo por “fitossanitário”, e cria a Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito) no âmbito do Mapa.
Estão entre as prerrogativas dessa nova comissão apresentar “pareceres técnicos conclusivos aos pedidos de avaliação de novos produtos defensivos fitossanitários, de controle ambiental, seus produtos técnicos e afins”. O colegiado também indicará os 23 membros efetivos e suplentes, deixando de fora representantes dos consumidores, da Anvisa e do Ibama – um ataque aos princípios da precaução, conforme os críticos.
Também no “pacote” está o PL 6.299/2002, do então senador Blairo Maggi, que altera regras para a pesquisa, experimentação, produção, embalagem e rotulagem, transporte, armazenamento, comercialização, propaganda, utilização, importação, exportação, destino final dos resíduos e embalagens, registro, classificação, controle, inspeção e fiscalização. Se for aprovado, a embalagem dos agroquímicos deixará de ter, por exemplo, a presença da caveira – símbolo de veneno conhecido universalmente, até mesmo por pessoas analfabetas e crianças.
“São alterações que vão afrouxar ainda mais as normas, como proibir apenas os venenos que causem intoxicação aguda, aquelas que ocorrem imediatamente à exposição ao produto. No entanto, estudos mostram que há intoxicações crônicas, que surgem tempo depois, pela exposição continuada a essas substâncias no ambiente de trabalho ou pelo acúmulo de substâncias nocivas no organismo depois de anos consumindo alimentos com agrotóxicos”.
Segundo Tygel, estudos recentes associam a exposição a agrotóxicos com o surgimento do Mal de Parkinson, doença degenerativa do sistema nervoso central, crônica e progressiva, que ocorre pela queda da produção de dopamina, neurotransmissor envolvido no fluxo de informação entre os neurônios. Já está estabelecido em estudos neurocientíficos que esta diminuição está associada a causas ambientais, e não apenas genéticas.
Omissão
A Campanha Permanente não estranha a submissão da Anvisa ao agronegócio e considera a agência omissa na defesa da saúde da população. Desde 2012 não divulga o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), e em 2016 nem sequer coletou amostras de alimentos. Além disso, não avalia a presença de venenos em alimentos como carne, leite, ovos, industrializados para alimentação infantil e de adulto e água mineral, suspendeu a fiscalização das indústrias de agrotóxicos, não consolida nem divulga dados sobre esse mercado.
Outros aspectos graves são a lentidão nas reavaliações iniciadas em 2008, com resultados questionáveis, a falta de previsão de novas reavaliações apesar de decisões internacionais importantes sobre seus efeitos à saúde, de participação da sociedade civil nos processos decisórios,
Os sistemas informatizados para permitir organização, divulgação e acesso a dados seguem sem conclusão, fazendo com que a Anvisa descumpra integralmente a Lei de Acesso à Informação.
Coquetel venenoso
Presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e integrante da Associação Brasileira de Agroecologia, o agrônomo Leonardo Melgarejo destaca a prevalência do viés comercial em detrimento da preocupação com a saúde nesse recorde de registros. “Não temos tamanha variedade de insetos e ervas daninhas que exijam tamanha diversidade de venenos”, diz.
E aponta falhas metodológicas. “No caso dos venenos genéricos, há uma confusão. Passam a ideia de que se trata de algo semelhante aos remédios, onde o princípio ativo é o que interessa. No caso dos agrotóxicos, devemos nos preocupar com os químicos utilizados no coquetel colocado à venda, junto com o princípio ativo”, afirma.
Conforme exemplifica, o herbicida 2,4-D contém entre as impurezas um grupo de substâncias, as dioxinas. Extremamente perigosas, estão entre os agentes cancerígenos. Além disso, há outros produtos associados igualmente tóxicos, que têm a função de desintegrar a gota de agrotóxico em contato com as folhas das plantas, facilitando sua absorção e a ação tóxica.
“Sem contar aqueles resultantes da transformação destes e de outros componentes, seja pela metabolização da planta, como o AMPA, a partir da aplicação do glifosato, pela ação do sol, de elementos químicos que compõem o solo”, destaca o agrônomo. “Estes subprodutos do princípio ativo e dos demais componentes geram novos riscos de combinações e sinergias perigosas. Portanto, liberar o uso de um agrotóxico sem estudos, apenas baseado na afirmação de que outros com o mesmo princípio ativo, com efeito similar, já foram aprovados, vale para o agronegócio mas não vale para a saúde e nem para o meio ambiente.”
Na avaliação de Melgarejo, a decisão da pasta conduzida por Blairo Maggi deveria ser repudiada pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério do Meio Ambiente. “Nós, ambientalistas, consideramos que esta decisão só poderia ser tomada em um governo que não tem compromissos com o futuro. Quanto mais barato for um agrotóxico genérico, maior será o risco de problemas associados aos demais componentes, mesmo que o princípio ativo corresponda ao que se verifica em todas as formulações. São os trabalhadores rurais, os agricultores e os consumidores que verificarão isso no futuro.”