Trivial entre mulheres grávidas, a urgência em ir seguidas vezes ao banheiro virou motivo de advertências para a mineira Nayara Silva. Operadora de telemarketing, ela não tinha autorização para se ausentar da mesa por mais de cinco minutos ao longo do dia. Impossibilitada de cumprir a regra, virou alvo de repreensões frequentes dos supervisores. Meses mais tarde, no retorno da licença-maternidade, os abusos continuaram. Findo o período de, pelo menos, quatro meses em casa garantido por lei, soube que o seu nome havia deixado de constar no sistema eletrônico de controle de ponto. Ainda que assinasse diariamente uma folha de controle em papel, faltas eram computadas e descontadas do seu salário, segundo relata
“Mudaram o meu horário e não me davam o tempo para amamentar a que eu tinha direito. Comecei a ter pânico de trabalhar, iniciei um tratamento com antidepressivos. Chegava em casa sem condições físicas ou psicológicas de cuidar do meu filho. Quando conversei com supervisores, a situação se agravou”, relembra a jovem, de 23 anos, moradora de Juiz de Fora (MG).
Nayara procurou assistência jurídica e, quando seu filho completou seis meses, obteve pedido de rescisão indireta, dispositivo previsto na legislação trabalhista para romper o vínculo empregatício. Com o filho beirando os 2 anos, a jovem ainda está em busca de emprego, mas diz ter receio de voltar a trabalhar.
O relato de Nayara ressoa no discurso de Raquel, Carla, Dilssa e outras tantas mulheres cuja saída do trabalho teve relação com a maternidade. Segundo especialistas, ainda que a Constituição vete a dispensa de gestantes sem justa causa, frequentemente elas são vítimas de abusos dos empregadores durante a gravidez ou depois da licença.
“Esses casos são muito comuns. Há situações em que as mulheres são transferidas para unidades mais distantes de casa ou sofrem outros tipos de retaliações por estarem grávidas. A legislação protege as gestantes, mas, muitas vezes, elas acabam pedindo demissão porque há uma política indireta de perseguição”, afirma a procuradora do Trabalho Lisyane Chaves Motta, coordenadora nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade) do Ministério Público do Trabalho (MPT).
‘Tratamento diferenciado’
A descrição coincide com a história da produtora Raquel Corrêa. Ela estava no terceiro mês de gestação quando o chefe disparou aos gritos, na frente de um cliente: “Que merda, garota. Você não para de ferrar tudo”. Segundo a jovem de 28 anos, a hostilidade passou a ser do feitio do empregador, de uma produtora de TV carioca, depois que anunciou a gravidez. Era a segunda gestação em um curto período de tempo: seu primeiro bebê morreu 15 dias após nascer, e ela tirou a licença.
“Comecei a receber um tratamento diferenciado. Falavam que eu não tinha foco e resolveram colocar outra funcionária no cargo que eu ocupava. Perguntei por que estavam me tratando daquela forma, e acabaram dizendo que já imaginavam que de repente eu não ia querer voltar da licença ou que logo teria mais filhos. Falaram que esse perfil não era interessante para eles”, conta ela, grávida de cinco meses, acrescentando ainda que, depois do episódio, decidiu deixar a produtora.
Fila para engravidar
A percepção de que funcionárias gestantes criam inconveniências levou a gerente de outra empresa operadora de telemarketing em Juiz de Fora a criar uma espécie de escala para as trabalhadoras engravidarem. Quem já tinha filho ia para o final da “fila”, e as que não fossem casadas legalmente estavam excluídas da lista. Ainda segundo as regras, estabelecidas por e-mail, as “elegíveis” para engravidar deveriam comunicar à companhia com antecedência de seis meses. A prática levou Carla Borelli, ex-analista de treinamento, a mover uma ação na Justiça. Em setembro, decisão do Tribunal Superior do Trabalho condenou a empresa onde Carla trabalhava, a Brasil Center Comunicações, a indenizá-la em R$ 50 mil.
“Era uma situação constrangedora, uma invasão na vida privada das pessoas. E percebia que, quando alguém engravidava, a gerente não gostava. Vi uma colega trabalhar horas seguidas de pé com uma barriga enorme”, afirma Carla, hoje mãe de três meninos.
Seu advogado na ação, Nélio Gouvêa, do escritório Dorival Cirne, diz que o assédio moral é a tática mais comum de empregadores que não desejam manter no emprego mulheres grávidas ou mães. Ele dá mais exemplos de abusos cometidos:
“No caso das que trabalham com comissões, uma das prática mais correntes é tirar ferramentas de trabalho. Os chefes deixam de passar informações necessárias para os negócios, e elas não conseguem manter o salário”, conta.
Foi o que aconteceu com a consultora comercial Evellyn Luz, de Sumaré (SP), de 29 anos. Ela estava em experiência numa empresa de logística quando descobriu a gravidez. A partir daí, diz, chefes passaram a negar sugestões de negócios pelos quais recebia comissões:
“Rejeitavam todas as propostas que eu mandava. Fiquei vagando, não sabia o que fazer. No último dia do meu período de experiência, às 18h, me mandaram embora. Parei de trabalhar. Só voltaria se fosse para uma empresa que desse mais atenção à maternidade”, diz.
Embora muitas vezes descumprida, a legislação trabalhista obriga que estabelecimentos onde trabalham ao menos trinta mulheres tenham creches ou paguem um auxílio-creche. Este ano, o MPT iniciou ações para alertar empresas sobre a regra. No Paraná, entrou com ações para que shoppings, que concentram grande número de trabalhadoras, forneçam local apropriado. E, numa medida pedagógica, a Coordigualdade enviou ofício a todas as procuradorias regionais orientando que entrem com representação junto a estabelecimentos para que se adequem à lei.
Nos EUA, caso mobiliza debate
A discussão sobre a relação entre empresas e gestantes ganhou força nos Estados Unidos este mês, com o início do julgamento de um caso envolvendo a gigante de logística UPS na Suprema Corte americana. O processo foi movido por Peggy Young, uma ex-motorista da companhia. Ao ficar grávida, ela foi instruída por seu médico a não levantar mais do que cerca de dez quilos durante a gestação. Apesar de prever serviços leves para empregados feridos no trabalho, portadores de deficiência e outros com problemas de saúde, o regulamento da empresa não tratava de casos de gravidez, e a companhia se recusou a aceitar a recomendação médica. Ela, então, entrou em licença sem vencimento e processou a UPS, alegando discriminação e danos financeiros. A argumentação da UPS prevaleceu nas instâncias inferiores, e o caso chegou à Suprema Corte, que, em 3 de dezembro, ouviu os argumentos da defesa de Peggy. Mesmo com perspectivas diferentes, grupos em defesa da mulher a favor e contra o aborto estão unidos em favor da ex-motorista. A sentença final ainda não saiu.