Em novembro do ano passado aconteceu em Roma (Itália), a 2ª Conferência Internacional de Nutrição (CIN 2). Apesar de alguns avanços no combate à fome no mundo em relação ao primeiro encontro, realizado em 1992, um dado ainda assusta: em pleno século 21, 850 milhões de pessoas são cronicamente subnutridas.
O conceito de segurança alimentar é cada vez mais presente nesse debate. Mais do que matar a fome da população, o Comitê de Segurança Alimentar (CSA) afirma que é preciso que “todas as pessoas tenham acesso físico, social e econômico a uma alimentação suficiente, segura e nutritiva, que satisfaça suas necessidades dietéticas e preferências alimentares para garantir uma vida ativa e saudável”.
Fora do Mapa da Fome da ONU desde 2014, o Brasil ainda tem o que evoluir nessa questão. Para o Secretário-Geral da Rede de Articulação e Informação Alimentação Primeiro (FIAN, em Inglês) Flavio Luiz Schieck Valente, programas como o Bolsa Família dão o primeiro passo, mas não bastam.
Para ele, estas medidas são limitadas em relação ao que seria necessário para conter a expansão criminosa do agronegócio e causas diretas dela como a devastação dos recursos naturais e humanos, o êxodo rural, a redução da concentração de renda e propriedade e as desigualdades flagrantes.
Brasil de Fato – Muito se falava sobre o combate a fome no mundo. O conceito de segurança alimentar foi adicionado faz pouco tempo para o grande público. O que seria segurança alimentar?
Flavio Luiz Schieck Valente – Segundo o Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CSA), a segurança alimentar existirá quando: “…todas as pessoas tem acesso físico, social e econômico a uma alimentação suficiente, segura e nutritiva, que satisfaça suas necessidades dietéticas e preferencias alimentares para garantir uma vida ativa e saudável. Os quatro pilares da segurança alimentar são disponibilidade, acesso, utilização e estabilidade”.
No Brasil, ela é vista como um conjunto de princípios que podem colaborar para a promoção e proteção integral do direito humano à alimentação e nutrição adequadas, entendido como um direito de todo e toda habitante do território nacional, e uma obrigação do Estado. O estabelecimento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), a criação por lei federal do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), são conquistas do povo brasileiro em direção à erradicação da fome e promoção do bem- estar nutricional para todos e todas.
Ele é um conceito que continua a ser debatido e disputado no mundo, mas que ainda se encontra à reboque dos interesses do grande capital, em especial pelas transnacionais do agronegócio. É impossível orientar políticas que combatam as causas estruturais da fome, da má nutrição e da desigualdade, na medida em que o conceito não lida com a questão do poder e do controle sobre os recursos naturais, produtivos e culturais necessários para a produção de uma alimentação diversificada e saudável.
Muitos dizem que, pela expectativa de vida estar crescendo no mundo, estamos adotando medidas mais saudáveis. A declaração da CIN aponta o contrário. Afinal, estamos comendo melhor ou não?
A expectativa de vida no mundo tem aumentado devido a uma redução significativa da mortalidade infantil, mas sem que isto signifique uma melhora progressiva na qualidade de vida. Tem-se observado nos países mais ricos e industrializados e nos chamados emergentes, uma redução da expectativa e da qualidade de vida entre os grupos sociais mais pobres, devido a doenças associadas à obesidade e sobrepeso, como a pressão alta, derrames, infartos, diabetes, entre outras.
A Declaração oficial da Conferência Internacional de Nutrição (CIN 2) aponta que cerca de 850 milhões de seres humanos vão toda a noite para a cama com fome e cerca de 2 bilhões apresentam diferentes formas de desnutrição, entre os quais 200 milhões são crianças com desnutrição aguda e crônica. Ao mesmo tempo, cerca de 1 bilhão e meio estão obesos ou com sobrepeso.
Todas estas doenças estão associadas à desigualdade, à contaminação dos campos, alimentos e pessoas, e a um padrão alimentar inadequado e pouco saudável, caracterizado pela redução da diversidade alimentar, excesso de açúcares, de sal e gorduras saturadas.
O modelo de crescimento neodesenvolvimentista do Brasil e em grande parte do mundo tem sido alvo de muitas críticas. Como podemos superá-lo para que um sistema mais sustentável de produção de alimentos possa surgir?
O modelo atual de desenvolvimento brasileiro e de outros países que buscam ocupar um espaço econômico, social e político mais relevante no contexto internacional é o reflexo de uma disputa de projetos de sociedade, ainda profundamente hegemonizado pelo capital industrial e financeiro internacional.
A reforma do CSA em 2009 foi liderada pelos estados membro da América Latina e Caribe e somente foi possível mediante aliança com o forte Movimento Global pela Soberania Alimentar, facilitado pelo Comitê Internacional de Planejamento pela Soberania Alimentar, convocado pela Via Campesina. Da mesma forma, a iniciativa do governo do Equador, de propor a criação de um Grupo de Trabalho Intergovernamental no Conselho de Direitos Humanos para elaborar a proposta de Pacto Internacional vinculante regulando a atuação das multinacionais, no que se refere a violações de direitos humanos, somente foi vitoriosa devido à forte pressão estabelecida junto aos governos de países ricos e demais países renitentes, no sentido de que a ação não fosse bloqueada. Mais uma vez a presença dos movimentos populares foi crucial.
Neste contexto, a declaração da sociedade civil à CIN 2 entende que “…é necessário reafirmar a centralidade dos produtores e produtoras de pequena escala e familiar , sendo estes e estas os sujeitos chaves e os condutores dos sistemas alimentares locais e os maiores investidores na agricultura”.
Quais medidas podem ser tomadas pela ONU, por exemplo, para que a soberania alimentar seja respeitada?
A sociedade civil global que trabalha com alimentação e nutrição, em particular os movimentos populares, entendeu que alguns grandes eixos de ações são necessários para que avancemos em direção a construção de uma sociedade mais equitativa e justa onde todos e todas tenham seu direito humano à alimentação e nutrição adequadas.
O primeiro é que a ONU vem sendo asfixiada, em nome do neoliberalismo, por conta da redução do aporte dos fundos necessários para o seu funcionamento como entidade pública a serviço dos povos. Os governos precisam recuperar o controle democrático sobre a ONU e colocá-la efetivamente a serviço dos interesses da maioria.
Em relação à governança sobre o tema, os movimentos populares, as Organizações Sociais da Sociedade Civil (OSCs) e os governos têm que proteger os espaços das políticas públicas de alimentação, nutrição e saúde contra a ingerência de acordos de comércio e investimentos. Eles também devem garantir a regulação adequada e a responsabilização de atores econômicos poderosos, como as corporações transnacionais, como por exemplo, relacionado ao acaparamento de terra e publicidade para crianças.
Outro fator fundamental para o avanço da proposta da soberania alimentar seria a progressiva aproximação das agendas de lutas dos diferentes movimentos, e a possibilidade do estabelecimento de objetivos estratégicos conjuntos. Este processo já está em andamento.
Por que o relatório dá muita importância às mulheres nessa questão da má nutrição? Como o empoderamento delas pode ajudar nessa questão?
Mais da metade da desnutrição infantil no mundo está ligada a violações dos direitos das mulheres e das crianças, em particular de seus direitos sexuais e reprodutivos. Muitas meninas são forçadas a casar e a ter filhos em uma idade precoce, antes de atingirem o desenvolvimento pleno, seja do ponto de vista físico como afetivo. Esta imposição aumenta enormemente o risco de desnutrição materna e infantil.
As mulheres indígenas e camponesas da Colômbia, por exemplo, definem que a violência cometida contra o corpo da mulher é o primeiro ato de acaparamento, pois enfraquece os laços comunitários e familiares e abre espaço para outros atos semelhantes.
As mulheres, em pé de igualdade com os homens, devem ter seus direitos humanos plenamente garantidos pelo Estado. Somente desta maneira elas terão condições de ter controle sobre seu corpo e sua vida, e inclusive, de ter controle sobre a decisão de unir-se ou não a alguém e ter ou não filhos.
Ao mesmo tempo, o aleitamento é o primeiro ato de soberania alimentar, na medida em que a decisão de amamentar é da mulher, mas as condições para que o ato se viabilize de maneira adequada são de responsabilidade coletiva da família, da comunidade e do poder público. Por isso a declaração conclama os Estados a “…protegerem as crianças do marketing agressivo e inadequado de substitutos do leite materno”.
Qual a importância de programas de distribuição de renda como o Bolsa Família têm para a soberania alimentar? O que mais os governos podem fazer quanto a isso?
Os programas de distribuição de renda são importantes, pois cumprem obrigação do Estado de garantir a realização do direito humano à alimentação e nutrição adequadas.
Os últimos governos brasileiros tem anunciado o avanço em alguns programas considerados estruturantes que possibilitariam que as famílias rurais e urbanas mais pobres não precisassem mais do Bolsa Família. No entanto, estas medidas são limitadas em relação ao que seria necessário para conter a expansão criminosa do agronegócio e causas diretas dela como a devastação dos recursos naturais e humanos, o êxodo rural, a redução da concentração de renda e propriedade e as desigualdades flagrantes.
Alguns debates são essenciais para confrontar a pobreza, a fome e má nutrição, em todas suas formas, nas áreas urbanas e rurais. E eles passam por entender a necessidade de reformas amplas na sociedade como a agrária e a habitacional e repensar diversas políticas para que possamos ter de fato uma democracia participativa e horizontal.