Busca
Entrevista

O feminismo turbina e melhora o marxismo

Autora do sucesso em vendas “Como falar com um fascista”, a filósofa e escritora Marcia Tiburi lançou no Ciclo de Formação SMetal a obra “Feminismo em comum”

Fernanda Ikedo/ Imprensa SMetal
Foguinho/ Imprensa SMetal
Em entrevista, Marcia Tiburi afirma que cabe às mulheres mudar a equação dos jogos do poder da sociedade

Em entrevista, Marcia Tiburi afirma que cabe às mulheres mudar a equação dos jogos do poder da sociedade

Na noite de terça-feira, dia 10, pouco mais de 350 pessoas lotavam o auditório do Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região (SMetal) para mais uma edição do Ciclo de Formação, que já contou com palestras de João Pedro Stédile, Frei Betto, Guilherme Boulos, Emir Sader, entre tantos outros lutadores e intelectuais brasileiros.

Mas desta vez não seria um homem a ocupar o centro das atenções, no auditório e sim a gaúcha que se tornou feminista Marcia Tiburi, filósofa, escritora, colunista da Revista Cult e uma das principais vozes contra a personalidade autoritária, no Brasil.

Ela tem diversos livros publicados, mas um deles fez muito sucesso nas vendas, o “Como falar com um fascista”, apesar de ter sido lançado em 2015, com o país afundado no neoliberalismo econômico e de ser o começo de um processo de ódio. Três anos depois desse lançamento, a lógica que estava confusa na sociedade, hoje ela adquire mais concretude.

Conforme Marcia, a falta de vergonha da brutalidade fascista está ainda mais explícita. “Nosso momento é ainda mais perigoso do que era em 2015 e, certamente, daqui a um a três anos, se nós não interrompermos esse processo de fascistização da sociedade, talvez estejamos numa situação ainda pior”.

Para combater e barrar o ódio disseminado na sociedade, contra as mulheres, contra os negros, contra a classe trabalhadora, Marcia afirma que o caminho é o feminismo. Para ela, as mulheres fazem uma revolução pacífica, lutam de uma outra maneira.

Marcia era amiga de Marielle, a mulher, negra, lésbica, favelada, vereadora de esquerda, que foi assassinada no Rio de Janeiro, no dia 14 de março deste ano. Vinte e seis dias após a morte de sua companheira de lutas, Marcia lamenta o Estado de Exceção que o Brasil vive e da intervenção militar no Rio de Janeiro, estado que escolheu para morar e dar aulas, depois de sair do Sul, aos 30 anos e passar por São Paulo.

“Nessa outra cultura nós vamos ter que refazer o sentido da nossa humanidade, uns com os outros”, pontua.

LEIA, na entrevista concedida pela filósofa à imprensa SMetal, o que o feminismo, como prática, tem a ensinar.

Em seu livro “Feminismo em comum: para todas, todes e todos” você cita a equação “a violência ser sofrida pela mulher” e o “poder ser exercido pelos homens”. Como e de que forma mudar essa equação?

Marcia Tiburi: A luta feminista visa, justamente, alterar essa equação. A minha intenção era mostrar o processo e sinalizar para toda a sociedade, para as mulheres feministas e para as mulheres que não são, mas que podem se tornar feministas que é preciso produzir um movimento capaz de tirar desse circuito. Há uma circularidade nessa equação. Quanto mais violência as mulheres sofrem, mais poder os homens têm. A violência passa também a ser um mecanismo do poder. Cabem às mulheres mudar esse cenário. Ao mesmo tempo os homens também possam alterar esse cenário. É claro que é mais difícil exigir uma postura de alteração desse cenário dos sujeitos de privilégio.

Ao mesmo tempo esse é o esforço de fazer uma revolução pacífica, como o feminismo tem sido até hoje. As mulheres feministas sofrem muito preconceito e, ao longo da história, elas conseguiram transformar muito o cenário de injustiças perpetradas contra elas mesmas por meio de uma postura que não é a de confronto, da disputa, não é a da violência que é a conhecida dos homens. As mulheres lutam de uma outra maneira.

Como se tornar uma feminista?

Marcia Tiburi: A gente chama de feminismo uma teoria e uma prática. O feminismo é uma ética e, justamente, por ser uma ética, é uma outra política. Então, a meu ver, tornar-se feminista implica uma autoreflexão crítica sobre a própria condição que se vive. Se eu percebo os jogos de poder que estão lançados sobre mim eu posso me tornar feminista e também ajudar as outras pessoas a se tornarem feministas, favorecendo a compreensão acerca desses jogos do poder.

As mulheres, muitas vezes, não percebem isso. Até porque, vamos dizer, as pessoas não têm tempo de pensar nesse tipo de questão. Essa ideia não está colocada. No nosso cenário cultural as pessoas passam o seu tempo seguindo regras, obedecendo parâmetros pré-estabelecidos, assistindo televisão, ouvindo discursos prontos e o processo reflexivo é um processo lento e evitado também numa cultura como a nossa, regida por uma economia política e um espírito capitalista.

Em relação às ações do presidente golpista Michel Temer, como a reforma do ensino médio, que retira a importância das disciplinas de humanas, não dificulta o pensar sobre si mesmo e sobre as questões humanas, como entender esses jogos de poder? Você como filósofa, como analisa isso?

Marcia Tiburi: Por um lado, a gente precisaria de uma educação consistente. O Brasil vive, historicamente, uma precariedade na educação, que se intensifica em certos momentos. Se a gente pensar na história da educação nos anos 60. Os diversos acordos internacionais, dos quais o Brasil foi vítima. Sempre levando em conta que há uma colonização externa e uma colonização interna, o acordo dos donos do poder e do capital estrangeiro com os colonizadores internos e o povo que fica sempre desassistido e abandonado. A educação brasileira foi abandonada. Ao mesmo tempo, os governos de esquerda dos últimos anos, houve uma certa vontade para melhorar esse cenário. Fernando Henrique Cardosonão abriu uma universidade e não permitiu, por exemplo, que durante seu governo, que as disciplinas de filosofia e história e sociologia (sendo ele um sociólogo) entrassem no ensino médio. Foi o governo Lula que promoveu essa luta, antiga também dos professores de filosofia, de ter essa disciplina formal no ensino médio. Mas que agora (no governo de Michel Temer), deixou de fazer parte da base curricular.

De fato, as instituições são fundamentais, mas por outro lado, eu acho que a nossa luta, nesse momento, que se agrava o pragmatismo do golpe. Nós vamos ter que construir a base da formação na cultura. Não podemos mais esperar muita coisa de um projeto escolar nesse momento, não teremos. O neoliberalismo não se interessa por escola. O neoliberalismo se interessa por shopping centers, bancos e não se interessa, inclusive, por capital produtivo. Nós não temos mais um capitalismo produtivista, agora a gente está numa fase do neoliberalismo que promove o capital financeiro, o rentismo, o capital improdutivo.

Por isso, que não tem mais emprego porque o trabalho propriamente dito, a produção por meio do trabalho, inclusive o lucro por meio do trabalho é abandonado. Hoje, a gente vive aquilo que eu tenho chamado de trabalho espectral, que é um trabalho escravo e acho que isso é uma coisa muito importante para pra gente discutir nos cenários dos sindicatos porque quanto mais máquinas e quanto mais nós mesmos, como cidadãos, operarmos os aplicativos, menos emprego há. Eu acho terrível a gente ser usuário, por exemplo, de um serviço qualquer e, ao mesmo tempo, ser funcionário não pago da empresa da qual a gente usa o aplicativo. Essa é uma questão.

Mas, eu acredito muito que a gente precisa construir uma outra cultura. Nessa outra cultura nós vamos ter que, refazer o sentido da nossa humanidade, uns com os outros. Recriar o mundo da vida. Para isso, os espaços de diálogo coletivo são fundamentais.

Numa sociedade capitalista, como você citou em sua obra, que administra privilégios e opressões. Como superar o preconceito de raça, de classe, de gênero e de sexualidade?

Marcia Tiburi: Eu vivo apostando, justamente por eu ser professora de filosofia, no diálogo. Agora, o diálogo é complexo, não é um bate papo, não é uma conversa e também não é um acordo. O diálogo é uma reflexão profunda, que implica também a constituição de uma subjetividade, que é justamente, o que o capitalismo trabalha para que não aconteça. Então, o capitalismo nos esvazia subjetivamente e depende do nosso esvaziamento. Os meios de comunicação de massa, eles são mecanismos de esvaziamento subjetivo. Isso é uma coisa séria e complexa de se falar. Nós perdemos a relação dos meios de comunicação enquanto meios – a condição de meios foi abandonada –e eles passam a ser tratados como fins. As pessoas lidam com a televisão, com o facebook e com o telefone celular como se eles fossem o objetivo, não como se fossem meios para uma outra coisa. Então, é claro que as empresas que hoje produzem fake news e coisas do tipo, ou as empresas que estão aí emprestando serviço de comunicação, elas sabem que são apenas meios para um outro fim, que é o fim do poder. Mas, o cidadão podia saber que esse meio deveria ser meio para o fim de sua própria cidadania. Mas, a cidadania não acontece nos meios, acontece na vida. Eles deveriam ser meios para a construção de uma cidadania. Se a gente não lembrar disso, acho que a gente não tem caminho, sabe, para a desconstrução desse cenário.

O preconceito ele é o efeito de um medo e o medo ele não é um sentimento natural, ele é um afeto manipulado, produzido, assim como o ódio. Os meios de comunicação de massa, sobretudo aquilo que a gente chama de mídia hegemônica servem, justamente, às produções dessas manipulações.

Em Sorocaba, um movimento de mulheres vem promovendo algumas conquistas, como a alteração da lei do Conselho Municipal da Mulher, que elegeu sua primeira presidenta, em 30 anos e elegeu também uma mulher trans. Na manhã desta terça, as mulheres também foram para a câmara pressionar os vereadores e retirar da pauta o projeto de título de cidadão a um político homofóbico e racista, o Bolsonaro.

Marcia Tiburi: Isso é alvissareiro, que você tenha essa notícia para contar sobre Sorocaba. Acho que nos instiga, nos emociona e nos inspira e eu acredito muito que os coletivos feministas, o movimento feminista tem muita a ensinar para uma outra forma de produzir o campo político na nossa época.

É uma luta que envolve uma outra perspectiva que não é a da guerra, não é a da destruição, não é a do apagamento do outro, mas é a renovação do contrato social, do contrato do civilizatório, da produção de uma vida voltada para a constituição do comum. Acho que o feminismo é como teoria, mas também como prática, o que há de mais evoluído. Você pensa em feminismo você pensa na questão da ecologista, que no Brasil está super apagada. Você pensa nas questões sociais, mas numa outra perspectiva, a partir da experiência da singularidades dos indivíduos, da pessoa singular, mas também de uma cultura que tenha suas características próprias. Enfim, das várias formas de vida e dos vários corpos que têm o direito de estarem presentes na cidade, no ambiente. A gente pensa outras cidades, outra forma de governar, a gente pensa outro sentido de liberdade. Então, eu realmente acho que o feminismo, como prática, tem muito a ensinar.

Penso assim, o marxismo no século 19 ensinou muita coisa pra muita gente e continua nos ensinando até hoje. O marxismo é a teoria a ser estudada. Mas o feminismo, sobretudo o feminismo interseccional, que coloca no mesmo nível a questão de gênero, de raça, de classe, ele turbina e melhora o marxismo. Então, esse diálogo é o que a gente deve promover hoje.

É importante também que as pessoas deem muito valor aos livros. Se a gente não pode ter uma educação formal , do ponto de vista do estado autoritário isso não é possível, nós temos que nos ligar nos livro, ler e produzir livros, escrever, ler muito e o livro nesse momento é a melhor arma.

CONFIRA a galeria de fotos do evento e trechos da entrevista em vídeo.

tags
ciclo em comum entrevista Feminismo formação livro Marcia olhos palestra tiburi vidro
VEJA
TAMBÉM