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Entrevista

Negro Belchior: ‘Temos que disputar o imaginário’

Confira a íntegra da entrevista exclusiva que o professor de História e fundador da rede de cursinhos Uneafro, Douglas Belchior, concedeu à Imprensa SMetal no dia 27 de junho

Imprensa SMetal/Fernanda Ikedo
Foguinho / Imprensa SMetal

Douglas Belchior concedeu entrevista ao SMetal no dia 27 de junho, antes de ministrar palestra sobre redução da maioridade penal, na sede do Sindicato

Por Fernanda Ikedo

Em entrevista à imprensa do SMetal, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região, no dia 27 de junho, o professor de História, formado pela PUC/SP, e fundador da rede de cursinhos Uneafro, Douglas Belchior, fala sobre militância social, preconceitos e ressalta que o Brasil não é o país da impunidade. “Para o pobre o Brasil não tem impunidade, tem impunidade pra rico, rico não vai preso”.

Segundo ele, é fundamental que os movimentos mais progressistas da sociedade façam a disputa do imaginário para um projeto de sociedade. Atualmente, “os sentimentos que levam grande parte das pessoas a agirem são sentimentos conservadores”.

E ele provoca: “a periferia, as mulheres e os negros serão, só mais uma vez, um elemento do discurso ou eles serão protagonistas da ação”?

Imprensa SMetal – Como surgiu o Douglas Belchior no movimento negro?

Douglas Belchior – Na verdade o movimento negro veio depois, minha militância começa dentro de casa, minha mãe sempre militou dentro da igreja católica em comunidade eclesial de base. Por ela sempre participar das ações sociais da igreja eu já me envolvia nesse clima de solidariedade. Aí, eu também passei a frequentar a pastoral da juventude, o espaço dos jovens católicos na minha comunidade.

Minha mãe sempre foi muito simpática ao PT, sempre participou de campanhas, como voluntária, então tinha um clima dentro de casa, muito pobre, mas engajada, em Itaim Paulista na divisa com Poá.

Depois disso, na escola, eu imagino que por conta dessa influência eu também desde cedo já me organizava com estudantes montando grêmio estudantil. Daí, para o partido foi um pulo e depois para movimento de cursinho popular, que é onde eu realmente me envolvi com mais força, há uns 18 ou 16 anos atrás mais ou menos.

Nos cursinhos populares é que eu comecei a conhecer essa dinâmica de movimento negro, ai foi quando eu comecei a estudar sobre o tema. Eu participei de núcleos de cursinho popular que discutiam muito a questão do racismo no Brasil. Os movimentos de cursinhos populares sempre foram muito fortes em São Paulo, nos últimos 20 anos eles cresceram muito.

Esse debate em torno do acesso à universidade sempre foi uma coisa muito cara para a classe trabalhadora e para a população negra especialmente, e até assim, antes do governo a gente não tinha programa, esses programas vieram a partir deste governo, os programas mais fortes, de maiores acesso, as políticas. Até então, os cursinhos eram talvez as únicas alternativas que os pobres tinham (os cusinhos populares) de se preparar, de ter acesso à informação que o levava à universidade. Também fazia discutir essa realidade.

Então foi nesse meio que eu acabei conhecendo o movimento negro. Quando foi em 2006 eu fui para capital, sai da beira de atuação política daquele local e fui atuar politicamente na capital de São Paulo, com o movimento negro, ai as coisas se aprofundaram mais, passei a me relacionar com os grupos de movimento negro e conhecer as lideranças.

Imprensa SMetal – Legal que você já teve toda uma base política de conscientização formada. Então quer dizer, você já vai para o movimento negro com a questão da classe trabalhadora.

D.B – Sim, eu já tinha uma formação e uma vivência na escola da esquerda, eu consegui acessar a universidade por conta desse trabalho de cursinhos, aí na universidade eu tive uma atuação no movimento estudantil, participei de gestões de centro acadêmico na PUC, eu fiz história (curso) na PUC. Fui gestor de centro acadêmico lá e, sempre conciliando esse debate de raça e classe e amadurecendo na minha formação a leitura do Brasil, não só dessa leitura tradicional ortodoxa de que o debate classista conseguiria explicar a realidade brasileira, por que não explica, no caso brasileiro não explica, e aprofundando essa consciência de que para explicar a realidade social do Brasil. É preciso entender que existe um tripé que sustenta a opressão no Brasil e esse tripé é econômico, um dos elementos de classe é o elemento econômico, elemento de gênero, a questão das mulheres e o outro é o elemento de raça, a questão dos negros.

Não é possível explicar o Brasil se você não faz parte da premissa de que esses três elementos interagem na dinâmica da opressão, então, vez ou outra, um ocupa o espaço de protagonismo, mas eles se equivalem.

SMetal – E aqui, o Brasil tem um fosso de injustiça social muito grande. É difícil você militar apenas em um destes, por que se você está dentro de uma causa você parte de todas elas, é tudo muito ligado.

D.B – Eu acho que sim, eles se relacionam por que qualquer categoria profissional de trabalhadores, ou você vai ter uma maioria de negros, ou você vai ter uma parcela muito importante dos trabalhadores, que são negros. Reconhecer essa origem e fazer o uso no sentido político do que ela tem de potencial revolucionário é muito importante.

Hoje as mulheres ocupam grande parte do campo, do trabalho formal e não formal. Então, como é que você dialoga com a categoria ou com a classe sem perceber as especificidades e aquilo que dói mais nas mulheres ou nos negros? Então até para a organização da classe você precisa dialogar com essas realidades, se não, você não dialoga, não conversa, não toca, não mobiliza.

Imprensa SMetal – Perfeito, inclusive uma palestra do Marcio Pochmann aqui no Sindicato, ele colocou que, daqui há 30 anos a população vai ser 70% negra e a maioria mulher. Você vê políticas públicas voltadas para esses segmentos? Por que hoje o negro é marginalizado, a mulher também. Falta muita equiparação social, mas como você vê a construção disso? Por que daqui a 30 anos o cenário vai ser esse de 70% da população negra, mas o Brasil está preparado? Esta caminhando para as políticas públicas?

D.B – Olha, eu acho o seguinte, o Brasil tem uma história que a gente precisa perceber o impacto que essa história tem para a realidade brasileira, por que o que a gente está vivendo agora não caiu do céu, é fruto de um processo e a gente vive num país que tem 515 anos de história e três quartos dessa história foi sobre o regime de escravidão.

Não existe Brasil, não existe país, não existe nação! Nós não existimos sem a escravidão e se a gente considerar que três quartos é quase toda a nossa história e, só nesse último quarto, que é os últimos 127 anos de dita democracia recortadas por duas ditaduras então nossos processos de democracia, de vivência foram de processos estruturados e formais de opressão. Mesmo esses períodos de democracia são muito questionáveis. Para a população negra, por exemplo, qual é objetivamente a diferença do posto de saúde durante um período de democracia e um período de ditadura militar?

A escola pública tem muita diferença da escola que educa os nossos filhos de trabalhadores, negros e tal, de uma de democracia e uma de ditadura?Ou a polícia é muito diferente? Entende? Então no ponto de vista do acesso a direitos e da opressão do estado não tem lá muita diferença, eu não estou dizendo que a ditadura é igual ou é melhor, eu estou questionando o caráter da democracia. Nesse sentido as nossas políticas são muito recuadas. Por mais que o Brasil não tenha vivido experiências de políticas sociais a gente não pode ficar satisfeito com as que a gente tem, elas são extremamente pontuais, frágeis, grande parte delas não são políticas de estado, são de programas de governos, o que torna mais frágil ainda e a bel prazer do governante daquele momento.

Então é verdade que a gente inaugurou políticas interessantes e que provocam mudanças em médio e longo prazo, vou dar um exemplo: política de cotas em universidades! Super atacada pelas elites brasileiras, e que foi colocada, inclusive a iniciativa das cotas no Brasil e das ações afirmativas como um todo é ainda anterior ao governo Lula. O Fernando Henrique é quem inaugura, por que o Brasil assina um protocolo internacional, o tratado de Durban, se eu não me engano em 2001, então você já tinha um compromisso internacional, algumas iniciativas nesse sentido, eles vão se aprofundar a partir de 2003, com as elites todas “descendo o pau”, contra, com todo o aparato da mídia, da intelectualidade, da academia burguesa, elitista, racista brasileira, contra, até hoje contra.

Mas essa fissura na parede, esse pequeno passo, hoje constituiu uma das coisas mais legais que estão acontecendo no Brasil, que mesmo ainda pouca presença negra nas universidades, é o que tem de mais legal acontecendo, esses grupos de coletivos negros nas universidades públicas, especialmente pelo país a fora, com tolerância zero contra o racismo, com ativismo negro acontecendo, denunciando situações racistas por parte das universidades dos professores. Então, isso gera um caldo de organização política que a gente precisa disputar! Por que o fato de a “negrada” estar na universidade, de mais pobres estarem na universidade e vamos dizer assim, provocados a atuarem politicamente não quer dizer que eles vão atuar a partir da nossa escola da nossa esquerda brasileira.

Ao mesmo tempo coloca um desafio, quer dizer, nós estamos disputando essa galera? Essas turmas que estão chegando por essa política, estão politicamente próximas de nós? Defendem nossos valores? A gente percebeu no último período que talvez não!

Essas politicas são importantes, elas inauguraram um processo, mas elas estão muito aquém da necessidade. Nós não podemos correr o risco de admitir a necessidade e ao mesmo tempo promover ações que não atendem essas necessidades, a gente precisa avançar.

Imprensa SMetal – E essa disputa de corações e mentes desses jovens, como que você percebe a questão do debate da idade penal? Por que mesmo muitos jovens, a gente vê por ai algumas declarações de causar certo terror.

D.B – A maioria, eu acho que você usou o termo correto, é a disputa de corações e mentes, a disputa do imaginário que a direita e as elites decidiram fazer com muita força, nesse último período, com agressividade, e que nós deixamos de fazer, deixamos mesmo!

Imagine que a ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), por exemplo, que é um grande avanço enquanto formulação de ideia, como formulação política, como proposta política é um avanço e uma conquista da classe trabalhadora, da luta de direitos humanos no Brasil, da luta nos direitos da criança e do adolescente e é reconhecido no mundo inteiro. O ECA é um documento premiado fora do Brasil, é reconhecido por outros países como uma formulação de relação com a adolescência muito avançado.

Desde a sua aprovação, em 90, as elites nunca o aceitaram, tanto que a PEC que diminui a maioridade penal é de 1993, entende? Então o ECA tem 25 anos e há 22 existe uma proposta de destruir o ECA, de reduzir a idade penal, de questionar esses elementos que são civilizatórios, de você considerar o adolescente um ser em fase de desenvolvimento, psíquico, metal, físico, quantas bobagens você fez com 16 anos? Eu não quero nem lembrar o que eu fiz com 16 anos.

Eu perguntaria assim pra quem esta ouvindo a gente: fala sério, você acha que a sua filha o seu filho, seu primo, seu irmão, seu vizinho, seu colega de 16 anos estão preparados para as coisas da vida? Pense com sinceridade.

Esse debate atravessado está em disputa, está colocado desde 25 anos atrás, ano sim e ano não um adolescente comete um crime grave. A gente sabe que o percentual de jovens com menos de 18 anos que comentem crimes graves é ínfimo para a realidade, mas a imprensa sempre pegou como bode expiatório e nesse processo de colocar na imprensa e ficar repetindo assunto é um processo pedagógico de formação da massa! Então nesse sentido eles estão, desde que o ECA existe, fazendo uma campanha contra o ECA e, o posicionamento popular em torno da maioridade penal sempre foi de uma maioria a favor da redução por que eles sempre trabalharam isso politicamente e pedagogicamente pela TV, pelos meios de comunicação.

Ocorre que, desde a redemocratização, com a eleição do Collor e até antes com o Sarney, especialmente a partir de 90, você tem a constituinte em 88, que é a constituição cidadã, depois você tem o ECA, e os governos que vieram em seguida tinham como pressuposto a defesa dessas políticas de direitos humanos, não cabia politicamente ser contra uma coisa que a gente tinha acabado de inaugurar e logo em seguida uma ditadura!

Mesmo o governo Collor, depois Itamar, depois Fernando Henrique, defendiam pressupostos, tanto que, embora houvesse vontade de reduzir a idade penal, o parlamento sempre manteve uma base que na hora H, ou seja, as elites botavam a campanha pedagógica na rua, formava a massa, mas na hora do vamos ver não conseguia fazer, por que existia uma disposição política que a maioria que seguia orientação do governo central, do executivo, vamos dizer assim, é a primeira vez e, lógico, depois dos dois governos do Lula, do governo Dilma, aprofundaram a defesa dos direitos humanos, pelo menos no ponto de vista da formalidade política, da prática não! Terrível.

É a primeira vez que o [poder] executivo no Brasil, desde a redemocratização, não tem força política pra impedir que isso avance no parlamento.

Imprensa SMetal – Tem um cenário que é: ampliação da terceirização, fim da rotulagem dos alimentos transgênicos, coisas assim.

D.B – É um contexto terrível. As campanhas contra o ECA, contra os diretos humanos, estarem o tempo todo em prática pelas elites e através dos meios de comunicação, essa disputa do imaginário, a correlação de forças é diferente, você tem uma maioria que não segue uma orientação política do executivo e, mesmo com o executivo sendo contra não tem força para barrar isso no parlamento. Nós também não fizemos nossa lição de casa! Mesmo nesse período, isso a gente tem que fazer autocrítica, temos que aprender com os erros por que é para isso que a gente existe. Fazer bobagem, ver que fez e não repetir! Falar para um mais jovem: ó, não repita essas bobagens aqui.

Então a gente ocupou um espaço de poder nesses últimos anos e, não foi por falta de boas ideias, vamos supor, o Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) é uma lei, se eu não me engano de 2012, que é a regulamentação do ECA, o Sistema Nacional da Socioeducação.

Todas essas respostas para essas perguntas, essas críticas, para esses argumentos que a direita tem, que é: tem que reduzir, que o jovem é criminoso, por que o sistema não funciona, por que não reeduca e por que não tem punição, o Sinase estabelece e regulamenta a prática ECA, só que, apesar de ser uma ideia, é um documento lindo e nunca foi massificado, colocado em prática. Nunca foi prioridade dos governos.

Nós também não fizemos nossa parte, a gente abandonou o trabalho de base, fomos nos ocupar em governar ou fazer política institucional, deixamos de fazer formação, onde tinha um boteco abriu-se uma igreja pentecostal ultraconservadora, nada contra a fé, tudo contra os lideres que são mentirosos e inclusive não representam a massa da comunidade evangélica. Então, isso somado as vontades da reação da direita, que quer tomar o poder central, dá esse caldo que a gente está vivendo. É muito difícil discutir isso com as comunidades por que as pessoas estão convencidas assim, de que para diminuir violência tem que prender mais, tem que ter mais cadeia, tem que prender mais e mais cedo, sobretudo aqueles que apresentam um risco à sociedade. Quem apresenta um risco natural à sociedade? Historicamente falando? Negros e Pobres!

A gente tem uma realidade hoje, o Brasil é a quarta maior população carcerária do planeta, ou seja, prende muito, se prisão resolvesse nós estaríamos muito, bem obrigado.

O Brasil é um país que, quase 100% dos presos são pobres, são da classe trabalhadora. Então veja, a gente prende muito, prende quase só pobre, estou dizendo aqui, ou você que está nos ouvindo ai conhece algum filho de rico que esta na fundação casa? Por favor! Se tiver é um e sai rapidinho, é um ou outro, o percentual ínfimo!

Não é verdade que o Brasil é o país da impunidade. O Brasil é o país da impunidade para um grupo da sociedade, pra outro não, para pobre o Brasil não tem impunidade, tem impunidade pra rico, rico não vai preso no Brasil, poderosos não vão presos no Brasil.

Esse discurso da direita, ou esse discurso de que finalmente os poderosos estão indo presos no Brasil, é muito perigoso porque nós estamos falando o seguinte: os descendentes dos escravocratas, os donos dos latifúndios, os banqueiros, essa galera rica que tem relação com a direita histórica não está indo presa não!

Quem está indo preso ou quem está sendo denunciado nesses debates de corrupção que está rolando ai são pessoas e grupos politicamente relacionados a quem a direita histórica quer derrubar. E a gente tem que entender, e agora, que maturidade a população tem para compreender essa política?

Imprensa SMetal – Diferente da sua militância, falta esse trabalho realmente de base, que foi extinto totalmente.

D.B – Claro! Essa provocação para a participação política existe hoje de maneira inversa daquela que a gente foi educada, é aquela do eu me represento, é a provocação a partir das redes sociais, é a provocação a partir de um sentimento conservador, por que é isso.

Imprensa SMetal – Uma doutrinação midiática?

D.B – Sim, hoje as pessoas estão provocadas a agir politicamente, embora elas repulsem a política, as organizações e instituições políticas, é uma provocação de atuação, de ação, mas toda ação pressupõe um sentimento, certo? Se eu não estiver sentindo nada eu não me levanto daqui, eu fico aqui, alguma coisa me faz levantar, que coisa é essa que me faz levantar? Essa coisa que me faz levantar e agir é que a gente tem que disputar! É o imaginário e nesse imaginário a gente está perdendo de goleada.

Então, não é a sede de justiça social, de defesa de direitos humanos, de defesa da utopia socialista revolucionária da esquerda que está fazendo as pessoas levantarem. As pessoas estão levantando porque elas querem gritar que tem que ter mais cadeias, que tem que ter coturno, tem que ter arma nova para o policial, tem que mandar prender, tem que torturar, tem que reduzir a idade penal. Os sentimentos que levam grande parte das pessoas a agirem são sentimentos conservadores! Misturados com bandeiras nossas, por que a pessoa também quer saúde, educação, segurança e lazer, essas bandeiras genéricas, certo? Que qualquer discurso moralista defende, qualquer discursos nacionalista de extrema direita também defende, mas os nossos valores universais de direitos humanos, isso a gente esta perdendo.

Imprensa SMetal – Essa crise que a gente vive hoje é um tempo que foi gestado. As pessoas deram mais espaço ao consumismo?

D.B – Foram estimuladas a isso, nós temos que lembrar que somos seres construídos social e historicamente e que ninguém nasce desejando um celular de última geração, então isso é um desejo que se constrói no tempo e no espaço.

Imprensa SMetal – Para se construir uma utopia leva-se muito tempo?

D.B – Precisamos ser sinceros entre nós e perceber se a contribuição que a gente deu nos últimos anos para alimentar essa utopia, se essa contribuição ajudou ou não, se contribuiu positivamente ou negativamente.

Será que hoje, mais de uma década depois, de poder nas mãos de um partido de esquerda que, sintetizava nele esses valores utópicos que a gente tanto defende, nós podemos dizer que avançamos na busca dessa utopia? Nós podemos dizer que do ponto de vista da mentalidade de classes nós avançamos? A população entende mais e melhor que ela é classe trabalhadora, que ela tem uma tarefa histórica, ou não? Ou nós recuamos nessa mentalidade?

Se a gente recuou, não deu certo a nossa experiência, e a gente tem que fazer dar, não podemos abandoná-la. Hoje eu acho muito mais difícil falar com os meus vizinhos sobre as nossas bandeiras históricas da esquerda, do que era há 10 anos, só que a gente devia estar 10 anos à frente, então a gente precisa olhar para dentro de casa e perceber onde está desarrumado. Acho que isso é a tarefa do momento.

Imprensa SMetal – Quer dizer, a tarefa da esquerda, é a de fazer uma auto-crítica, uma avaliação e partir para um enfrentamento dentro dessa avaliação?

D.B – Exatamente, nós temos que agir, temos que ir pra cima, nós não podemos ficar recuados. Na disputa de mentalidades quem age tende a vencer o jogo e a gente não tem instrumentos. Veja! A gente não acumulou instrumentos, a coisa mais importante pra falar com o povo hoje é a tecnologia, redes sociais e a televisão. A gente não conseguiu arranhar a estrutura de poder das megas corporações de comunicação do Brasil.

As grandes redes de comunicação continuam concentradas em meia dúzia de famílias, como é possível a gente não ter arranhado? Pior! Não estou falando que teria que ser como foi na Venezuela, manda fechar a Globo, embora fosse a nossa vontade e necessidade. Mas nem construir algo parecido com isso a gente conseguiu, a gente não conseguiu construir um jornal de circulação nacional. O Brasil de Fato, por exemplo, talvez a última grande experiência de tentativa de um jornal de esquerda de nível nacional, até hoje sofre financeiramente.

As nossas mídias alternativas são extremamente amadoras e pequenas no sentido não pejorativo, mas vamos dizer assim: o que a gente tem hoje é muito por iniciativa de sindicatos. Então, onde é que está o nosso projeto enquanto grupo social, partido e classe para a construção de uma grande hegemonia? Então a gente patinou muito nisso e precisa reconhecer para poder, daqui para frente, fazer melhor, diferente, eu acho isso.

D.B – O Lenin tem um livro clássico, chamado que fazer? A pergunta é essa, o que fazer? Quem descobrir vira um Lenin. Eu não sei o que fazer, a gente imagina, a gente arrisca.

Acho que as respostas que a gente tem para essas perguntas talvez elas estejam viciadas. Eu não consigo responder nada além do que eu sempre respondi pra isso e do que eu aprendi na nossa escola da esquerda, a gente tem que conversar com as pessoas, tem que ganhar elas para um projeto. É preciso, para convencer as pessoas e tocar no coração e na mente delas, ter um projeto claro, explicito, um projeto de começo meio e fim no sentido da aspiração, da ideia, mas não no sentido da prática, por que as pessoas tem que participar, ajudar a construir, então se não existe um sentimento de pertencimento e de participação não funciona, mais que isso, eu acho que hoje é a grande chave da questão.

Todos os discursos, toda a elaboração política, tanto das direitas quanto das esquerdas, coloca como eixo a sua elaboração a periferia, as mulheres e os negros. Perceba que isso não é uma elaboração só das esquerdas, é uma elaboração da direita também, quando você pega um programa político eleitoral feito pelas agências de publicidade e que estão indo para o ar, dos partidos de direitas mesmo, a linguagem deles é de rede social, é uma linguagem de rua e os personagens são de rua.

Embora as lideranças sejam as mesmas, velhas, brancas e quase todo mundo homem, o discurso eles reconhecem que, para ter capilaridade, para que sejam ouvidos, eles tem que dizer o que as pessoas entendem na comunidade e a comunidade precisa se encontrar no discurso do político.

É a única chance que existe para uso do que restou de credibilidade que as pessoas têm com a política, se é que restou! As esquerdas também, a gente está vivendo um momento em que está todo mundo, todo o campo da esquerda pensando o que fazer, como se reorganizar, como fortalecer, como construir novos projetos e como superar este momento. Certo?

A pergunta que eu deixo aqui é a seguinte: a periferia, as mulheres e os negros serão, só mais uma vez, um elemento do discurso ou eles serão protagonistas da ação? Por que não vai funcionar se o protagonismo da ação política não forem os sujeitos do discurso. Não vai funcionar, e isso a esquerda não aprendeu, ela teima! Embora carregue no discurso e perceba essa necessidade, não há um protagonismo desses setores na direção das ações políticas, inclusive na esquerda.

Onde é que estão os pretos? As mulheres? A reorganização da classe trabalhadora passa pelo protagonismo da periferia, dos negros e das mulheres.

Imprensa SMetal – A questão é muito brasileira? Essas necessidades de querer ser tão personalista? Por que um dos problemas de se chegar a esse momento de crise, de utopia, de não ter plano, planejamento, de não ter um projeto, passa justamente por aquilo que você falou que as pessoas pararam com os trabalhos de base e assumiram compromissos institucionais. Mas por exemplo, parece que você não vivencia isso na Bolívia, Venezuela, mesmo a Argentina?

D.B – A nossa história e a formação da nossa mentalidade é realmente assim: não difere drasticamente do que é a América latina, eu acho assim, mesmo nesses países, embora seja um pouco diferente a relação, a política também se dá muito a partir do personalismo, então você olha para a Bolívia você lembra o Evo Morales, assim como aqui é o Lula, como foi o Hugo Chaves, então tem muito esse caráter personalista.

Mas tem cosias que são diferentes e para eu, que discuto questões raciais, são muito importantes, por exemplo, quando você olha para a América Latina, os governos ditos ou os governos de esquerda, os governos frutos da luta da esquerda e da luta popular, são governos marcadamente com uma marca muito explicita de organização política a partir da demanda étnica. Esse elemento é muito poderoso politicamente nessas experiências da América Latina, e por que no Brasil não?

Olha só o elemento de raça nesse sentido extremamente diferente! O que potencializou politicamente os projetos de poder da esquerda na América Latina, claro, tem tudo um contexto mais complexo do que isso, mas o elemento étnico como propulsor na liga da discussão da classe foi fundamental.

Ser classe trabalhadora na Bolívia é igual a ser indígena, e pelos outros países muito parecidos, mesmo Equador, com Rafael Correia Marques, enfim, onde o campo popular ocupou o poder isso é muito marcadamente forte e no Brasil não, no Brasil ele é disperso!

O elemento propulsor da luta de classe a partir da questão racial é negado no Brasil e a gente tem teóricos que já escreveu sobre isso. Clóvis Moura, por exemplo, fala muito isso. Florestan Fernandes em sua elaboração, Alberto Guerreiro Ramos, eles vão dizer: olha, o Brasil é um país negro, é um país de herança escravocrata e um país de herança africana e, ao negar isso, ela diminui, eu digo alto crítico da esquerda. A esquerda ao negar esse potencial está diminuindo seu poder de impacto, de ação e de atuação, por que a nossa esquerda tem uma elaboração branca, tem práticas brancas europeias. O nosso espelho de organização política é esse espelho de organização tradicional, a gente poderia experimentar outras coisas e eu acho que a hora é agora e penso que o protagonismo precisar ser a partir daí.

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