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ENTREVISTA

“É preciso debater um projeto para o País”

O economista e líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile, concedeu entrevista à equipe da revista Ponto de Fusão, na sede do Diretório Nacional do MST, em São Paulo

Fernanda Ikedo - Revista Ponto de Fusão
Foguinho/Imprensa SMetal

Na entrevista, Stédile explica porque a reforma agrária é necessária e quais são as ameaças das propostas da elite para o país

Na tarde de uma quinta-feira, dia 18 de fevereiro, João Pedro Stédile ressaltou à revista Ponto de Fusão que, se a Lei de desapropriação de terras improdutivas fosse efetivada, faltariam sem terra no Brasil, já que o país possui mais de 120 milhões de hectares de terras improdutivas.

Durante a entrevista, que aconteceu na sede do Diretório Nacional do MST, em São Paulo, não faltaram críticas construtivas ao governo de Dilma, além de uma análise sobre o atual caráter da reforma agrária, que é o de levar alimentos saudáveis para as mesas de todos os brasileiros.

Stédile assevera também que é preciso colocar energia na formação política, no estudo, na reflexão sobre a história da classe trabalhadora e que “não existe saída sem se debater um projeto para o País”.

Confira aqui trechos da entrevista em vídeo.

Revista Ponto de Fusão – Pode explicar a importância da reforma agrária para os metalúrgicos?

João Pedro Stédile – A reforma agrária historicamente, e se quiserem, ao longo do século 20, quando a humanidade, estava organizada fundamentalmente no capitalismo industrial e os estados queriam ser republicanos – a questão da terra emergiu na luta de classes por pressão dos camponeses.Mas com um sentido de que era preciso democratizar o monopólio da propriedade da terra, que estava nas mãos dos latifundiários. Distribuir essa terra para os camponeses pobres que pagavam a renda, que eram assalariados e, portanto, você aplicaria na prática, a democratização do direito ao acesso ao bem da natureza, que é a terra.

E seria a concretização dos princípios republicanos. Todos os cidadãos são iguais perante a lei. Por que apenas alguns tinham direito à terra e não todos? Do ponto de vista econômico, a distribuição da terra naquele período representava transformar os camponeses em produtores de bens para a sociedade e consumidores dos bens da indústria.

E com isso, em todos os países onde foi feita a reforma agrária, foi feito em aliança com a burguesia industrial, porque ela tinha interesse de desenvolver o mercado interno de seus produtos. Foi assim que se fez em todo o hemisfério norte – chamadas de reformas agrárias clássicas ou burguesas.

RPF – E agora?

Stédile – Agora, no mundo inteiro e aqui no Brasil a reforma agrária não é apenas distribuir terra. A reforma agrária tem que representar uma nova concepção de como você organiza a função social da terra. Não é mais apenas para garantir o direito ao trabalho do camponês. Agora, ela é necessária porque os camponeses são os únicos que podem produzir alimentos saudáveis para toda a sociedade porque o modelo do capital, que é o agronegócio, ele só produz em grande extensão de terra e com uso intensivo de veneno. E o veneno mata a natureza, altera o clima e vai para o estômago e algum dia vira câncer.

RPF – Por quais razões essa produção que envenena e mata prevalece no Brasil?

Stédile – A reforma agrária que interessava aos capitalistas era quando a burguesia industrial e o capitalismo industrial eram hegemônicos no século 20, porém desde a crise da década de 90 o capitalismo mudou e entrou para uma nova etapa que nós chamamos de capitalismo globalizado. Nessa nova etapa do capitalismo globalizado, dominado pelo capitalismo financeiro e pelas multinacionais, não interessa mais a reforma agrária. Eles substituíram a ideia da democracia da propriedade, da produção de alimentos pelos camponeses por alta produtividade e pelo veneno. Então, lutar por reforma agrária agora não é só voltar a debater o direito à propriedade. Agora, é debater um novo modo de produzir na agricultura, que priorize alimentos saudáveis, o respeito à água, à biodiversidade, ao não uso de venenos e a potencializar uma vida social no campo. Porque o projeto do agronegócio é expulsar todo mundo do campo e mandar para as favelas. E na cidade, que se virem.

São Paulo é a prova disso. É um grande produtor agrícola, mas produz o quê? Cana-de-açúcar, laranja e um pouco de gado, no oeste. O povo da cidade de São Paulo vive com etanol, açúcar, laranja e eucalipto? Que inclusive, é uma das causas da seca na Cantareira. Hoje, a cidade de São Paulo corre sérios riscos de desabastecimento porque se cai uma ponte na marginal e parar de entrar caminhões com comida a população passa fome em uma semana.

RPF – Pra ser revertida essa lógica precisa contar com os movimentos sociais. O povo está com essa consciência?

Stédile – O Brasil vive um período histórico muito difícil que está marcado por uma crise econômica – faz três anos que a economia não cresce; por uma crise social – os problemas das grandes cidades só se avolumam: falta de casa, falta de escola, falta de saneamento, transporte público; vive uma crise política, porque os políticos não representam mais o povo – 0.0.1% da população acredita nos políticos; e uma crise ambiental – as agressões capitalistas à natureza se refletem na falta de água, nas alterações climáticas, tudo isso vemos todos os dias.

Essa crise é grave porque não é uma crise passageira ou uma crise de governo. É uma crise da forma que a sociedade está organizada e, segundo os nossos historiadores, ela só se evidenciou na sociedade brasileira na crise da década de 30, depois, na década de 60 e depois, na década de 80. Cada vez que acontecem essas crises as saídas são muito difíceis e prolongadas. Não é apenas resolver com uma passeata ou com uma eleição.

Você só sai de uma crise estrutural quando um conjunto de forças sociais consegue aglutinar uma proposta de um projeto de saída para o País e conseguir o apoio da maioria da população.

RPF – Quais as chances de se sair dessa crise?

Stédile – O que vivemos hoje? Nenhuma classe social no Brasil e nem as suas expressões partidárias estão apresentando um projeto de saída para a crise, nem pela direita, nem pela esquerda, nem pelo centro. E isso é trágico porque demonstra que vamos demorar muito tempo para sair da crise porque enquanto as classes não se aglutinarem num projeto não haverá saída.
Se ler os jornais hoje aparecem as ideias mais estapafúrdias. Tem uma parte da burguesia dos banqueiros, das multinacionais, que querem a volta do neoliberalismo, liberdade total para o capital. Mas o neoliberalismo não é um projeto para o país, é um projeto de lucro que nem sequer inclui a burguesia industrial. Tem um setor da burguesia industrial que tem as metalúrgicas lá em Sorocaba, da cervejaria, da Friboi, que para eles não interessa o neoliberalismo. Eles querem desenvolver o mercado interno porque se o povão não comer carne e não tomar cerveja eles não têm lucro.

E tem um setor da classe média reacionária, que é 8% da nossa população, que acha que a saída pra crise é derrubar a Dilma, mas nem a grande burguesia acredita nisso. A grande burguesia tá usando outra tática. Eles percebem que a crise é grave e que vai demorar sair. A tática que eles estão usando é tentar usar todos os espaços institucionais que eles puderem para ir colocando suas ideias neoliberais.

Então, eles vão se infiltrando no próprio governo Dilma, como o Levy, que era funcionário do Bradesco, assim como está lá a Kátia Abreu, do agronegócio, entre outros. Eles tentam usar o poder judiciário para acuar o debate na classe trabalhadora e tentam usar a mídia. Essa mídia burguesa que todos os dias fala mal dos trabalhadores, do neodesenvolvimentismo para tentar criar um pensamento na sociedade hegemônico pró-neoliberalismo.

RPF – Qual seria a saída pela esquerda?

Stédile – Do nosso lado, da classe trabalhadora, qual é a dificuldade que nós temos? Primeiro, temos que nos acertar entre nós e também construirmos um projeto.

Até o governo Lula, a maior parte das forças da classe trabalhadora se conformou com o projeto neodesenvolvimentista, mas o projeto era um pacto da classe trabalhadora com a burguesia avalizado pelo Lula. Quando ele saiu terminou o pacto e o neodesenvolvimentismo se esgotou.

Mesmo que nós apoiemos Lula em 2018, ele só se viabilizará se defender um projeto popular.

RPF – Quem pode encabeçar esse projeto? A Frente Popular?

Stédile – Ela é uma frente ampla para se defender. As nossas atitudes são muito mais reativas a impedir o golpe. Temos que ser contra o projeto de reforma de previdência, terceirização, então, a Frente Popular por ora ela tem cumprido um papel importante, mas muito mais uma frente ampla para defender os interesses da classe, mas ainda nós não temos unidade para construir um projeto alternativo para o país.

O segundo desafio que nós temos é que só se constrói um projeto da classe trabalhadora se houver um reacenso do movimento de massa e nós não temos ainda. Em 35 houve, em 60 houve, em 89 houve.

RPF – Há um movimento contrário?

Stédile – É natural esse tempo de espera antes do reacenso, vem a crise, vem a conscientização sobre a causa dos problemas e a classe começa a se mexer em proveito próprio. Eu acho que a gente já saiu do final do túnel. Houve outros períodos que a classe trabalhadora estava mais quieta, porque tinha emprego com o governo Lula, porém, nos últimos anos a crise tem se manifestado, aumentaram as greves. É verdade que as mobilizações que nós fizemos no ano passado ainda são apenas a militância e esse é o nosso problema porque a classe trabalhadora como massa ainda está sentada no sofá, assistindo na televisão. O nosso desafio é tirar ela do sofá. Mas isso não é em um passe de mágica, mas eu não tenho dúvida que nos próximos anos a classe trabalhadora voltará a se mobilizar. Nesse bojo do novo período de desenvolvimento das massas é que nós vamos ter novos líderes, novas formas de luta e vamos ter as condições políticas para construir um projeto de país.

RPF – Como se preparar para esse tempo?

Stédile – Não existe receita. Existe reflexão a partir das experiências históricas. Nos períodos de crise, como agora, são tempos de você botar todas as energias possíveis para articular unidade, ou seja, as saídas dependem das massas, e para isso, precisa criar espaços unitários. Ninguém aqui vai ser o bam-bam -bam.

Segundo, temos que botar energia na formação política porque o estudo dos clássicos, a reflexão sobre a história da classe trabalhadora, que te dá os elementos para se desvendar o mistério do que está acontecendo.

Então, todas as forças da classe trabalhadora, seja no sindicato, nos partidos ou nos movimentos, têm que botar energia na formação política. Estudar, estudar, ler, fazer curso de formação.

E terceira tarefa prioritária é a comunicação de massas, ou seja, temos que usar tudo que é instrumento para chegar nas massas. Porque se elas não tiverem consciência do que está acontecendo não irão se mobilizar. E você chega às massas de mil formas, com jornal, com panfleto, com a arte contestatória, com o teatro comprometido, com músicas.

RPF – Agora, em relação ao segundo mandato de Dilma, vocês (dirigentes do MST) citaram na Carta de Caruaru que as medidas tomadas por Levy foram um equívoco. Como o movimento avalia esse segundo mandato e como vai atuar?

Stédile – Certamente cada um pode ter a sua avaliação sobre a natureza do governo Dilma. Na avaliação do MST o governo está perdido porque ele não consegue ser expressão de uma força da sociedade que tem um projeto. Então, se você olhar a composição do governo Dilma é de chorar. Tem todas as correntes ideológicas desse mundo, desde a Kátia Abreu (do agronegócio) até companheiros de esquerda como o Juca Ferreira e Patrus Ananias, do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Porém, o governo é essa geleia que não tem projeto. Ao não ter projeto ele é refém de quem pressiona. Só que nesse momento de crise, como as massas estão anônimas e os militantes, como nós, estamos na defesa contra o golpe, não tivemos capacidade ainda de pressionar o governo propositivamente.

Acho que agora, com essa burrice do governo de pautar a reforma da previdência, a classe trabalhadora, pelo lado das centrais sindicais, vai começar a ter então atitude propositiva em relação ao governo.

Nós, na reforma agrária também, já deu o tempo de espera e este ano vamos aumentar as mobilizações em todo o país, até porque o desemprego aumentou.

RPF – Como se segura o jovem no campo?

Stédile – De duas formas: garantindo renda e estudo. Nós conquistamos um programa que se chama Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), que permite aos jovens do campo entrar na universidade sem ter que mudar para a cidade. Porque são sistemas de alternância, vai pra universidade, estuda dois meses e depois volta para casa. E a maneira de dar emprego pro jovem no campo é a agroindústria cooperativa, porque uma agroindústria cria dezenas de formas diferentes de trabalho que não seja enxada. Ninguém quer ganhar uma enxada de presente no Natal. Temos que criar essas outras formas de trabalho, seja de contador, de motorista, de bioquímico, administrador, agrônomo, veterinário. Ele pode morar no campo, ter uma vida boa, potencializar sua vocação em outras oportunidades que há na sociedade.

RPF – Houve assentamentos em 2015?

Stédile – No final do ano o Incra apresentou para nós a tabela e foram assentadas cerca de 30 mil famílias, porém, 26 mil foram em assentamentos antigos. Famílias que desistiram, lotes que estavam vagos. Então, o Incra foi pegando gente em acampamento e colocando lá. Isso não representa desapropriação. O que não houve no ano passado foi desapropriação de terras improdutivas. As outras três mil, que foram em áreas novas, foram desapropriações feitas ainda em 2014.

RPF – Quanto tem de terra improdutiva no Brasil?

Stédile – O Brasil é o país do mundo que mais concentra propriedade da terra. A pirâmide é mais ou menos assim: 1% de maiores proprietários acima de 1.000 hectares são 65 mil fazendeiros, mas eles controlam 60% de todas as terras. Lá embaixo da pirâmide, onde estão 85% da população rural, controlam só 15% das terras. Por outro lado, temos ao redor de 4 milhões de famílias que vivem no campo e não têm terra, ou são arrendatários, meeiros, assalariados ou vivem nas periferias das pequenas cidades. Então, uma reforma agrária, nesse momento, poderia desapropriar, pela lei, só entre as grandes propriedades acima de 1.000 hectares improdutivas, mais de 120 milhões de hectares passíveis de desapropriação. Se nós aplicássemos a Lei que está aí de reforma agrária ia faltar sem-terra.

RPF – Quais os outros países que não fizeram a reforma agrária?

Stédile – Todo o hemisfério sul. Quem fez a reforma agrária foi o hemisfério norte, que se industrializou e fez a reforma, mas do Equador para baixo nenhum país fez. Alguns países da África aproveitaram a descolonização e distribuíram terra, como Moçambique, mas já a África do Sul não distribuiu. O pacto do Mandela manteve a terra para os brancos.

Como o hemisfério sul sempre foi tratado para oferecer matéria-prima e mão de obra barata a burguesia nunca se interessou em fazer a reforma agrária.

Em contrapartida, é possível que agora, no hemisfério sul, quando fizermos uma reforma agrária, será popular, não mais uma reforma burguesa apenas para incentivar a indústria.

RPF – Até se encontram produtos orgânicos nas prateleiras, mas são sempre muito caros. É por serem poucos que produzem?

Stédile – O culpado pelo produto ser caro nas prateleiras do Pão de Açúcar é o dono do Pão de Açúcar. Por quê? É tudo uma lógica capitalista. Eles perceberam que a parcela da população que está disposta a comprar orgânicos e quer orgânico porque tem consciência que está salvando sua saúde, é a parcela que tem mais dinheiro. Então, o supermercado aumenta o preço para aumentar seu lucro a partir da consciência da classe média. Um exemplo, o preço do tomate orgânico no Pão de Açúcar é de R$ 14 o quilo. Um dos fornecedores do Pão de Açúcar é um amigo nosso, que tem um sítio aqui perto do aeroporto de Viracopos. Ele produz tomate orgânico em grande quantidade com muita mão de obra sem veneno e vende para o Pão de Açúcar. Ele vende o tomate a R$ 3,50 o quilo. E ele vende no Parque da Água Branca, aos sábados. Perguntei se ele tem lucro a R$ 3,50 ele disse: “muito”.

O supermercado aumenta a taxa de lucro porque sabe que tem uma população que está disposta a pagar. Não é que o orgânico seja mais caro, nem que tenha menos produção. Hoje, somos vítimas do monopólio exercido pelas grandes redes de supermercado.

A REFORMA DA PREVIDÊNCIA E O POSICIONAMENTO DO MST

RPF – Por que os banqueiros querem essa reforma?

Stédile – Porque a privatização da previdência é uma das formas deles acumularem capital das contribuições previdenciárias sem custo, ou seja, quando você implementa a previdência privada, como aconteceu no Chile, na Argentina e no México, os trabalhadores vão contribuindo, os bancos vão montando os fundos e vão devolver para os trabalhadores daqui a 20 anos. Por isso, é uma pauta dos banqueiros. Foi o principal tema do discurso do Trabuco, presidente do Bradesco, na reunião do Conselho da Dilma. Um banqueiro está preocupado com a previdência dos trabalhadores? Vi com alegria que as centrais sindicais, unitariamente, são contra. Nós, do campo, já dissemos: se mexer na previdência dos trabalhadores rurais haverá mobilizações em todo o país. É uma questão de honra, passamos cem anos lutando e agora vamos perder para um governo que nós elegemos?

A REFORMA AGRÁRIA É PARA BENEFICIAR TODA A A POPULAÇÃO COM ALIMENTOS SAUDÁVEIS

Stédile – “O alimento saudável se transformou agora na principal bandeira da reforma agrária, porque antes as pessoas viam reforma agrária apenas como ‘direito dos pobres de ter terra para trabalhar’, agora não. A reforma agrária é a única forma de você produzir alimentos sem veneno.

A sociedade tem que escolher e nós percebemos que esse é o tema que nos ajuda a explicar a reforma agrária para a população. Em outubro do ano passado, nós fizemos uma feira de agroecologia dos produtos de reforma agrária, no parque Água Branca, em São Paulo. Quando começamos contatos com a prefeitura e com o governo do estado todos nos chamavam de loucos. Eles diziam que os sem-terra seriam enxotados pela classe média. Fizemos e foi um sucesso absoluto. Passaram pelas catracas do parque, na feira, 150 mil pessoas em três dias. No segundo dia já começou a faltar produto.”

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