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Lei da anistia

Anistia e má gestão dos governos civis sobre militares possibilitaram movimentos golpistas, diz professor

Pesquisador alerta para necessidade de se punir envolvidos no 8 de janeiro para evitar repetição de padrão histórico

Mateus Coutinho/Brasil de Fato
Arte sobre foto de Juca Martins

Mulheres protagonizaram a Campanha pela Anistia dos presos e exilados políticos na ditadura.

Criada com o objetivo de ser “ampla geral e irrestrita”, a Lei da Anistia sancionada em 1979 foi politicamente enviesada e estabeleceu as bases para os movimentos golpistas que apoiaram o ex-presidente Jair Bolsonaro e culminaram na manifestação golpista de 8 de janeiro de 2023.

A avaliação é do professor de Teoria Politica da UNESP e estudioso da história das anistias no Brasil, Paulo Ribeiro da Cunha. Para ele, a anistia de 1979 reflete o histórico de anistias ideologicamente norteadas e socialmente limitadas no país desde o início da República, em 1898. 

“Os militares que foram anistiados no campo progressista e nacionalista foram reintegrados, mas nunca reincorporados, diferente dos militares de direita que sempre foram reintegrados nas Forças Armadas, e muitos continuaram golpistas. O marco histórico disso foi 1935 (ano da Intentona Comunista) e depois tivemos o movimento integralista de 1938 (tentativa de golpe do movimento de inspiração fascista criado no Brasil) e isso não alterou em 1979”, afirma. Ele lembra que, em 1979, a anistia “ampla” não alcançou os movimentos de militares de patentes mais baixas e associados a causas progressistas e nacionalistas, o que só veio a ser discutido anos mais tarde.

“A anistia de 1979 tinha primeiro o pressuposto de crimes conexos, isto é, colocava no mesmo plano aqueles que foram perseguidos pela ditadura e os seus algozes torturadores e excluía uma parte dos militares, especialmente os praças e marinheiros”, explica.  “Na perspectiva individual, os militares sempre conseguiram bloquear reconhecimento político da categoria, mas os marinheiros foram conseguindo em alguma medida serem reconhecidos anos mais tarde, até o governo Bolsonaro que começou a revisar e desanistiar alguns deles”, segue o professor.

De acordo com o professor, diferente de outros movimentos, no meio militar os movimentos políticos ligados à esquerda capitaneados pelos militares de baixa patente nunca foram reconhecidos como manifestações políticas mas, via de regra, são enquadrados como insubordinação.

“Muitos deles (militares progressistas e contrários ao golpe de 64) foram barbaramente torturados, expulsos das Forças Armadas por atos administrativos. Não tiveram o direito à anistia porque não eram reconhecidas suas lutas dentro do contexto de defesa da legalidade como manifestações políticas, e sim transgressões disciplinares. Eles só vieram começar ganhar anistia bem depois, nas últimas anistias e na Constituinte de 1988”, explica.

Anistiados participaram de golpe em 64

Paulo Ribeiro da Cunha fez um estudo sobre todas as anistias no país, desde 1898 até 1979 para constatar que, via de regra, as Forças Armadas tendem a perdoar e reincorporar em suas fileiras os militares de patentes mais altas envolvidos em movimentos políticos e manifestações ligadas à direita. Já em relação aos militares, sobretudo os de baixa patente, associados a movimentos progressistas e até mesmo nacionalistas enfrentam até hoje mais dificuldades para terem suas anistias completamente validadas e serem reintegrados por exemplo.

Um dos pontos que o professor chama a atenção e que ele utiliza para endossar sua tese são justamente dos movimentos golpistas ligados à direita que existiam no país antes de 1964 e que foram anistiados, possibilitando vários dos articuladores dessas tentativas de voltarem ao poder a partir de 1964.

Este foi o caso, por exemplo de duas revoltas organizadas por setores da Aeronáutica ocorridas no governo de Juscelino Kubitschek: a de Jacareacanga (1956) e de Aragarças (1959). A primeira foi a tomada de uma base militar na cidade de Jacareacanga, no interior do Pará, por militares que acusavam JK de querer transformar o Brasil em um país comunista. Já a segunda for organizada por algumas das lideranças de Jacareacanga que haviam sido anistiadas e previa, com os mesmos argumentos, bombardear os palácios das Laranjeiras e do Catete, no Rio de Janeiro.

Em artigo sobre as anistias no país, o professor resume o desfecho dos dois episódios: “Em ambas revoltas, os rebelados ficaram isolados politicamente e face à iminente derrota, optaram pelo exílio. Juscelino Kubistchek anistiaria os primeiros rebelados bem pouco tempo depois, e, os últimos, seriam contemplados pela anistia de 1961. Não houve para eles prejuízos maiores em suas carreiras, sendo que, muitos deles chegariam ao generalato e alguns atualmente fazem parte da lista de torturadores (de 1964)”, afirma o texto.

Na outra ponta, os militares que encamparam movimentos progressistas e nacionalistas, como os que participaram da campanha O Petróleo É Nosso, que permitiu a criação da Petrobras, foram duramente perseguidos. No contexto da Guerra Fria, mesmo aqueles militares nacionalistas que não eram propriamente de esquerda foram perseguidos e, segundo Paulo Cunha, passam até hoje por dificuldades para terem suas anistias reconhecidas.

“No Clube Militar, a diretoria toda foi exilada em guarnições distantes do Rio de Janeiro e o acirramento da campanha anticomunista nas forças armadas, que atingia desde comunistas de fato a oficiais progressistas e nacionalistas indiscriminadamente, resultando na prisão de cerca de mil militares, a imensa maioria sargentos, muitos deles expulsos”, afirma o professor em seu estudo.

“Quanto aos oficiais de esquerda e nacionalistas, praticamente todos tiveram suas carreiras abortadas, e a maioria das promoções ocorreu por antiguidade. Quanto aos sargentos processados, muitos deles foram absolvidos, mas não foram reintegrados às Forças Armadas e alguns somente conseguiram ser anistiados recentemente, quase 60 anos depois”, segue o artigo

Governos civis e a postura militar

Mais do que um histórico de anistias enviesadas, o professor faz uma avaliação crítica da postura dos governos civis pós-ditadura que, na visão dele, não souberam lidar corretamente com os militares o que possibilitou a retomada do protagonismo deles no governo Bolsonaro e a tentativa golpista tramada em 2022.

“Desde o governo Fernando Henrique Cardoso e mesmo o governo Lula, possibilitou aos militares ainda cultivarem que são tutores, que estão acima da pátria e das leis civis. Os militares cultivaram isso, embora em alguma medida estiveram presentes no processo histórico, mas nunca deixaram de ter essa autovalorização”, afirma. Em várias ocasiões, durante os governos civis, os militares não foram punidos ou mesmo seguiram ocupando espaços e atribuições que poderiam ser feitas por civis.

O próprio Ministério da Defesa, por exemplo, tem até hoje parcela significativa de seus quadros composta por militares, deixando os debates sobre Segurança Nacional concentrados na visão deles, com pouca margem para atuação de lideranças civis ou de especialistas de fora do meio militar. Além disso, não faltam exemplos de episódios nos quais os militares não foram devidamente repreendidos pelos governos civis. Um dos mais emblemáticos episódios foi um discurso do então comandante do Comando Militar do Leste, Hamilton Mourão, em 2015.

Mesmo proibido de se manifestar politicamente enquanto militar da ativa, na palestra, Mourão afirmou que a saída da presidente Dilma não mudaria o “status quo”, mas que a “vantagem da mudança seria o descarte da incompetência, da má gestão e da corrupção”. Nos slides da palestra, Mourão apresentou mensagens como “mudar é preciso” e falou em “despertar para a luta patriótica”. Ele acabou deixando a chefia do Comando Militar do Leste mas, mesmo sob o governo DIlma Rousseff, não sofreu nenhuma punição administrativa.

Além deste cenário, Paulo Ribeiro da Cunha avalia que os próprios partidos políticos no país têm dificuldades de lidar com os militares e com os temas de Defesa Nacional. “Muita gente joga a culpa em Bolsonaro, na perspectiva de setores que se alinharam a ele e esquece a debilidade dos partidos políticos. Os partidos, em geral, tem dificuldade de lidar com a questão militar, a questão da segurança pública. Veja o Congresso Nacional, quantos parlamentres estão presentes na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional que, de fato, conhecem sobre o tema?”, questiona o professor.

Para o professor, a maioria dos congressistas não vê a importância estratégica da comissão e enxergam ela apenas do ponto de vista eleitoral como pouco interessante.

Neste contexto, ele faz um paralelo com a situação atual do país e diz esperar que as investigações sobre o golpismo do 8 de janeiro levem, de fato, à punição de militares envolvidos de todas as patentes, rompendo assim com a tradição história das anistias dadas a militares no Brasil

“Sem essa gradação (poupando os militares de alta patentes) nós teremos o retorno dessas práticas ao longo dos anos subsequentes e perderemos mais uma a oportunidade de ter os militares enquanto componente de um projeto de nação para sermos sempre ameaçados por eles, ou por setores deles juntos com os civis, de baterem sempre nos quarteis, serão novas vivandeiras dos quarteis com a certeza clara de que serão impunes”, afirma.

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